quarta-feira, 19 de março de 2008

O CAPITAL

Na ciência não há calçadas reais,
e quem aspire alcançar seus luminosos cumes,
tem que estar disposto a escalar a montanha por caminhos acidentados
Karl Marx
Prólogo (1872) à edição francesa de O Capital


Como Perry Anderson (1988), o característico do tipo de crítica representada pelo marxismo é que inclui uma concepção autocrítica; o marxismo é uma teoria da história que, por sua vez, pretende oferecer uma história da teoria. Desde o começo, em seus estatutos, inscreveu-se um marxismo do marxismo: Marx e Engels definiram as condições de suas descobertas intelectuais como a aparição de determinadas contradições de classe da sode capitalista; não simplesmente como um “estado ideal de coisas”, mas sim como algo originado pelo “movimento real das coisas”. Assim, o marxismo, como teoria crítica que aspira proporcionar uma inteligibilidade reflexiva de seu próprio desenvolvimento, outorga prioridade, a princípio, às explicações extrínsecas de seus êxitos, fracassos ou estancamentos. Entretanto, nunca se trata de uma primazia absoluta ou exclusiva, que não faria mais que eximir a teoria de suas responsabilidades fundamentais. Ao contrário, a necessidade de uma história interna complementar da teoria, que meça sua vitalidade enquanto programa de pesquisa guiado pela busca da verdade, é o que separa o marxismo de qualquer variante do pragmatismo ou do relativismo. Guiados por estas referências que nos proporciona Anderson, tentaremos realizar uma breve análise da trajetória do marxismo, fazendo referência à relação entre a história interna da teoria e a história política de seu desenvolvimento externo.

A experiência histórica: da tradição clássica ao marxismo ocidental

A tradição clássica do marxismo se formou a partir de Marx e Engels, fundadores do materialismo histórico, e da geração que os sucedeu, tanto do ponto de vista cronológico, como da produção intelectual. Os membros da geração posterior a Marx e Engels –Labriola, Mehring, Kautsky, Plejánov–, provenientes de regiões orientais e meridionais da Europa, estiveram intimamente vinculados à vida política e ideológica dos partidos operários de seus países, e suas obras foram uma espécie de continuação dos trabalhos de Engels, que procuravam sistematizar o marxismo histórico como teoria geral do homem e da natureza para dar ao movimento operário uma visão ampla e coerente do mundo que seria necessário transformar. A geração seguinte, mais numerosa que a anterior, chegou a sua maturidade em um ambiente mais tenso que seus predecessores, e confirmou uma mudança que começava a ser percebida: o deslocamento do eixo geográfico da cultura marxista clássica para a Europa oriental e central. Todos os membros desta geração –formada, entre outros, por Lênin, Luxemburgo, Hilferding, Trotsky, Bauer, Preobrazhenski, Bujarin– desempenharam um papel destacado na direção dos partidos operários de seus respectivos países. O desenvolvimento temático do marxismo desta época se dirigiu a duas problemáticas centrais: a necessidade de explicações e análise das evidentes transformações do modo de produção capitalista que tinham sido desenvolvidas pelo capital monopolista e pelo imperialismo[1]; e o surgimento de uma teoria política marxista apoiada diretamente na luta de massas do proletariado, e integrada na organização dos partidos[2]; a força central destes desenvolvimentos vinculava-se, sem dúvida, com as enormes energias revolucionárias das massas russas. Se o triunfo da Revolução Russa havia deslocado o centro de gravidade internacional da erudição histórica do marxismo para Rússia, a morte de Lênin e a consolidação de um estrato burocrático privilegiado, destruiu a unidade revolucionária entre teoria e prática obtida pela revolução de outubro. Todo o trabalho teórico sério cessou, e o país mais avançado do ponto de vista intelectual se converteu rapidamente em um páramo.
Com o estalo da Segunda Guerra Mundial, o panorama do mundo sofreu uma profunda transformação. A União Soviética, comandada por Stalin, assegurou a libertação da Europa do domínio alemão e, ao mesmo tempo, estabeleceu regimes comunistas nos países do leste europeu. Na França e Itália, o papel dos partidos comunistas na resistência os converteu nas organizações mais importantes da classe operária de seus países; enquanto que na Alemanha, a ocupação americana eliminou a tradição comunista anterior. Nos 30 anos seguintes, produziu-se um período de prosperidade econômica como nunca antes tinha conhecido o capitalismo, junto com a consolidação de sistemas parlamentares que, pela primeira vez, voltaram ao capitalismo estável no mundo industrial europeu e americano. Enquanto que nos países sob tutela da União Soviética produziram-se crises e ajustes depois da morte de Stalin, mas sem modificações fundamentais em seu funcionamento. Foi neste contexto econômico no qual a teoria marxista produziu uma mudança profunda, dando origem ao que se deu a chamar “marxismo ocidental”. Esta tradição se estruturou a partir dos trabalhos de uma série de destacados intelectuais provenientes das regiões ocidentais da Europa: Lukács, Korsch, Gramsci, Benjamin, Marcuse, Horkheimer, Adorno, Della Volpe, Colletti, Lefebvre, Sartre e Althusser.
Como afirma Anderson (1987), uma série de características define e delimita o “marxismo ocidental” como uma tradição integrada. A fundamental é o progressivo e lento distanciamento entre este marxismo e a prática política. A unidade orgânica entre prática e teoria, característica da geração clássica de marxistas, que desempenhou uma função intelectual orgânica e política dentro de seus respectivos partidos, iria perder-se pouco a pouco em meados do século posterior à Primeira Guerra Mundial
[3].
Entre meados da década de vinte e os levantamentos de 1968, o marxismo ocidental se desenvolveu de maneira vigorosa, mas longe de toda prática política de massas. Este divórcio vinculava-se com o período histórico que se correspondeu com o auge deste marxismo; o destino do marxismo na Europa foi o resultado da ausência de grandes levantamentos revolucionários depois de 1920, com exceção da periferia cultural –Iugoslávia, Grécia, Espanha e Portugal. A isto se somou a stalinização dos partidos herdeiros da Revolução Russa, que contribuiu para tornar impossível uma renovação genuína da teoria em um contexto de ausência de levantamentos de massas. Assim, a característica do marxismo ocidental, como afirma Anderson (1987), é que constitui um produto da derrota. O fracasso da revolução socialista fora da Rússia, por sua vez conseqüência e causa do rumo da Revolução Russa, foi o pano de fundo comum a toda tradição teórica desse período. Uma das conseqüências centrais deste processo foi um silêncio profundo do marxismo ocidental em alguns dos campos mais importantes para a tradição prévia ao marxismo: o exame das leis econômicas do movimento do capitalismo, e da análise das formas políticas do estado burguês, e da estratégia política para superá-lo
[4]. O progressivo abandono das estruturas econômicas ou políticas como pontos de interesse foi acompanhado por uma mudança básica em todo o centro de gravidade do marxismo europeu, o qual se deslocou para a filosofia.
Uma conseqüência adicional foi o deslocamento gradual dos lugares de produção do discurso marxista dos partidos socialistas e comunistas e dos sindicatos operários para as universidades e para os institutos de pesquisa. A mudança inaugurada com a Escola de Frankfurt no final dos anos 20 e princípio dos anos 30 se transformou em uma tendência dominante no período da Guerra Fria. Esta mudança de terreno na institucionalização do marxismo se refletiu em uma mudança de enfoque. Os determinantes externos que impulsionaram o deslocamento dos principais focos da teoria marxista da economia e da política para a filosofia, e seu traslado dos partidos às universidades, inscreviam-se na própria história política do período. Esta mudança, entretanto, complementava-se com outro elemento importante, neste caso interno à própria teoria: a revelação tardia dos mais importantes trabalhos do jovem Marx –em especial dos Manuscritos econômicos-filosóficos de 1844. Apesar de terem sido publicados pela primeira vez em 1932, foi no pós-guerra que se fizeram sentir dentro do marxismo os efeitos do descobrimento destas obras do pensamento do Marx.
Assim, o marxismo ocidental em seu conjunto invertia, paradoxalmente, a trajetória do desenvolvimento do próprio Marx. Enquanto que o fundador do materialismo histórico se deslocou progressivamente da filosofia à política, e em seguida à economia, como terreno central de seu pensamento, os sucessores da tradição que surgiram depois de 1920 voltaram às costas cada vez mais à economia e à política para passar à filosofia, abandonando o compromisso com o que tinha sido a grande preocupação do Marx maduro. Neste período se evidenciou um enorme interesse do marxismo em discernir as regras da pesquisa social descobertas por Marx, mas enterradas nas particularidades circunstanciais de sua obra. O resultado foi que uma notável proporção da produção teórica do marxismo se centrou em um debate sobre o método –Korsch, Sartre, Adorno, Althusser, Marcuse, Della Volpe, Lukács e Colletti produziram grandes sínteses, enfocadas essencialmente em problemas de cognição
[5]. Um elemento adicional, na ordem do discurso, foi que a linguagem em que estavam escritas as obras adquiriu um caráter cada vez mais especializado. Outra das características do marxismo ocidental foi que, além das questões de método, concentrou-se no estudo da cultura, em um sentido amplo[6]. As sucessivas inovações em temas essenciais dentro do marxismo ocidental refletiam, de fato, problemas reais que a história tinha exposto. Basta recordar as análises de Gramsci sobre a hegemonia; as preocupações da Escola de Frankfurt sobre os desdobramentos da razão instrumental; Marcuse e sua análise da sexualidade; as obras de Althusser sobre a ideologia; e o tratamento de Sartre sobre a escassez. Um traço fundamental comum e latente em toda esta análise era o pessimismo das conclusões.
Pode-se resumir, esquematicamente, o conjunto de características que definem o marxismo ocidental, da seguinte maneira. Nascido após do fracasso das revoluções proletárias nas zonas avançadas do capitalismo europeu depois da Revolução Russa, desenvolveu-se em uma crescente cisão entre teoria e prática política, que foi ampliada pela burocratização da URSS. Assim, o divórcio estrutural entre a teoria e a prática, inerente às condições políticas da época, impediu um trabalho político-intelectual unitário do tipo que definia o marxismo clássico. O resultado foi o traslado da produção teórica às universidades, longe da vida do proletariado, e um deslocamento da teoria da economia e da política à filosofia; esta especialização foi acompanhada por uma crescente complexidade na linguagem. Por sua vez, a produção teórica marxista procurou inspiração nos sistemas de pensamento contemporâneos não marxistas, em relação aos quais se desenvolveu de forma complexa e contraditória. Ao mesmo tempo, a concentração dos teóricos marxistas no âmbito da filosofia, junto com o descobrimento dos primeiros escritos do Marx, levou a uma busca geral retrospectiva dos antecessores filosóficos, e a uma reinterpretação do materialismo histórico à luz deles. Os resultados foram múltiplos: houve um marcado predomínio do trabalho epistemológico, enfocado essencialmente em problemas de método; o principal campo em que se aplicou o método foi o da estética, ou da cultura em um sentido mais amplo; as principais produções teóricas que desenvolveram novos temas ausentes do marxismo clássico revelaram um persistente pessimismo. O determinante desta tradição foi sua formação a partir da derrota, as longas décadas de retrocesso e estancamento que atravessou a classe operária ocidental depois de 1920. Mas, em que pese tudo isso, os principais pensadores permaneceram imunes ao reformismo. Não obstante sua distância das massas, nenhum capitulou ante o capitalismo triunfante como antes o tinham feito teóricos da II Internacional. Além disso, a experiência histórica que sua obra articulou foi também, em muitos aspectos críticos, a mais avançada do mundo, já que abrangia as formas superiores da economia capitalista, os mais velhos proletariados industriais e as mais longas tradições intelectuais do socialismo. Muito da riqueza e da complexidade deste histórico se inscreveu no marxismo ocidental, assim como em seus campos de eleição. O resultado foi que este marxismo alcançou uma sutileza maior que o de qualquer fase anterior do materialismo histórico (Anderson, 1987).

O marxismo continental
Como afirma Tosel (2001a), a história posterior a 1968 é extremamente complexa. Se o marxismo-leninismo continuou aprofundando sua crise irreversível, algumas grandes operações de reconstrução teórica testemunhavam uma vitalidade contraditória do pensamento marxista: entre 1968 e 1977, desenvolvem-se as últimas tentativas de renovação inscritas dentro da corrente da III Internacional ou em suas margens. Tratou-se de propostas de reforma intelectual, moral e política, formuladas por teóricos ligados aos partidos comunistas. A obra dos grandes comunistas filósofos heréticos conheceu seu último brilho. Lukács (1885-1971) escreve sua última grande obra Ontologia do ser social (1971-1973). Ernest Bloch (1885-1977) publica Atheismus im Christentum (1968) e Experimentum Mundi (1975). Na Itália, publica-se a edição original de Os cadernos do cárcere (1975) do Antonio Gramsci (1891-1937), que permite avaliar de maneira mais interessante a filosofia da práxis, ao diferenciá-la da interpretação de Palmiro Togliatti. Na França, Louis Althusser (1918-1990) continua fazendo da polêmica sobre uma nova expansão, e sobre as formas da ciência materialista da história, um elemento fundamental da última discussão filosófico-política internacional centrada no marxismo, Filosofia e filosofia espontânea dos cientistas e Elementos de autocrítica (1974). A sombra projetada por 1968 colocou na ordem do dia as perspectivas de superação da velha ortodoxia e da busca de uma saída à esquerda do stalinismo, e também colocou em questão a possibilidade de um reformismo revolucionário que centrava sua estratégia de poder em uma democratização radical. Entretanto, estas esperanças logo se viram frustradas (Tosel, 2001a).
No fim da década de setenta, o marxismo continental conheceu um processo de desagregação aberta, ou encoberta, ligada à marginalização (no caso da França e Espanha), à transformação social-liberal (Itália), ou à implosão (Leste Europeu) dos partidos comunistas. A retração do marxismo continental vinculava-se à evolução política do movimento comunista.
Como afirma Anderson (1988), o marxismo ocidental havia estado marcado por uma relação contraditória em relação à União Soviética. Apesar do processo de stalinização que se desencadeou na URSS logo depois da década de trinta, as esperanças de construir uma ordem social superior ao capitalismo continuaram sendo parte do movimento comunista internacional. Daí a distância permanentemente crítica da tradição do marxismo ocidental com relação à URSS. Entre 1954 e 1960, a sociedade soviética viveu um período de mudanças, liberalizou-se a vida cultural, adotaram-se reformas econômicas e se proclamou uma nova política externa. Entretanto, os fracassos dos últimos anos do Kruschev levaram a um processo de reação encarnado pelo conservadorismo brezhnevista. A última tentativa de reforma nos países do Leste foi a Primavera de Praga. Este projeto de construir uma democracia dos trabalhadores, em um país com fortes tradições parlamentares de pré-guerra e uma cultura parecida com a dos países ocidentais, foi sufocada pelos tanques soviéticos. A invasão de Varsóvia em 1968 enclausurou as últimas esperanças de desestalinização do bloco soviético. Neste contexto, uma nova força atraiu interesses no movimento comunista, a Revolução Cultural Chinesa, que chegou a parecer uma forma superior de ruptura com a herança institucionalizada da industrialização e burocratização stalinista. A Revolução Cultural proclamou como meta a superação da divisão entre trabalho manual e intelectual, e entre campo e cidade. Tudo isto devia realizar-se por meio da administração popular direta. Entretanto, a direção da experiência maoísta resultou bem diferente das promessas proclamadas. Já no começo da década de setenta, fez-se evidente o significado da Revolução Cultural: a repressão de milhões de pessoas, o estancamento econômico e o obscurantismo ideológico, simbolizado no culto a Mao. O repúdio à Revolução Cultural, logo depois da morte do líder chinês, abriu o caminho para uma nova política em um sentido muito mais liberal e pragmático. A frustração em relação à experiência Chinesa, que seria central no desenvolvimento do marxismo ocidental, e produziria um efeito de divisão intelectual similar ao do advento do eurocomunismo.
A experiência eurocomunista partiu também da crítica da experiência soviética, e sua verdadeira gênese foi a invasão de Tchecoslováquia. A alternativa eurocomunista fez pé firme na necessidade de preservar as liberdades políticas, e na defesa de uma ordem política que mantivesse as instituições parlamentares e repudiasse a ruptura violenta da ordem capitalista. O que se procurava era, em outras palavras, uma via pacífica, gradual e constitucional, situada nas antípodas do modelo da revolução de outubro. A adoção do eurocomunismo por parte das direções dos partidos comunistas pode ser considerada como uma aceitação tardia da preocupação heterodoxa pela democracia socialista na qual se apoiou desde o começo grande parte da tradição do marxismo ocidental. Outro fator decisivo para a adesão geral ao eurocomunismo foi a situação política do sul da Europa. Em meados da década de setenta, a região parecia estar preparada para uma mudança profunda na ordem social. Na França, a direita caiu em descrédito depois de 20 anos de governo ininterruptos. Na Itália, a corrupção e a incompetência da Democracia Cristã tinham dado lugar ao surgimento de uma situação pré-revolucionária, com uma esquerda extremamente forte, hegemonizada pelo Partido Comunista. A situação em Portugal também era amplamente favorável ao movimento comunista. Entretanto, as expectativas colocadas no eurocomunismo viram-se rapidamente frustradas. Os grandes partidos comunistas do continente foram derrotados em suas aspirações políticas. O Partido Comunista Italiano se desgastou na busca de uma aliança com a Democracia Cristã, decepcionando seus seguidores e sem conseguir chegar ao governo. O Partido Comunista Francês rompeu sua aliança com a social-democracia quando ainda era uma organização forte, precipitando seu fracasso em 1978, e retornando mais tarde ao governo, porém debilitado e derrotado. Por sua vez, o Partido Comunista Português, que tinha rechaçado o eurocomunismo, tentou sem êxito tomar o poder mediante um golpe burocrático e, com isso, terminou com a revolução portuguesa. Assim, o período de alta aberto em 1968 foi definitivamente fechado na Europa em 1976, e a questão do comunismo na Europa ocidental foi inteiramente resolvida com a derrota da revolução portuguesa e o declínio do PCI depois das eleições de 1976 na Itália. Esta série de fracassos foi um golpe demolidor para aqueles que tinham vislumbrado uma nova era do movimento operário no desaparecimento da velha ordem do sul. Foi neste ponto no qual a chamada “crise do marxismo” teve sua origem e significado. O que a desencadeou foi uma dupla decepção: a primeira se produziu ante o desenvolvimento da alternativa Chinesa; a segunda, ante o porvir da situação na Europa ocidental. Cada uma destas alternativas se apresentou como uma nova solução histórica, capaz de superar os dilemas da experiência soviética. No entanto, resultaram incapazes de resolver os problemas políticos do momento. A decepção crucial esteve marcada pela transformação do eurocomunismo em uma versão de segunda classe da social democracia. Isto afetou as perspectivas do socialismo naqueles países avançados que pareciam oferecer as maiores oportunidades para um progresso do proletariado no ocidente. Neste ponto se pode ver por que a “crise do marxismo” foi um fenômeno essencialmente latino: porque na França, Itália e Espanha a aposta pelo eurocomunismo era mais forte e, portanto, onde seu fracasso gerou um golpe mais duro. Neste contexto, o marxismo perdeu de maneira rápida sua relativa hegemonia. Muitos filósofos e intelectuais abjuraram com grande estrondo, ou se distanciaram discretamente em função de sua própria ética (Anderson, 1988).
Sob o efeito deste desaparecimento espetacular, entretanto, manteve-se uma pesquisa livre e plural, embora tenha perdido um de seus traços fundamentais: sua relação com as forças políticas e com os atores sociais que a modernização capitalista tinha transformado violentamente. Mas o desaparecimento do intelectual do partido, o eclipse do intelectual consciente e crítico, não constituiu um episódio do fim da história. Marx continuou sendo objeto de pesquisa e de tentativas de renovação com o objetivo de reformular uma teoria crítica à altura da época, embora diferente das operações de reconstrução surgidas das grandes heresias do comunismo do período anterior. Mais que ao fim do marxismo, assistimos a um florescimento disperso de vários marxismos. O surgimento de vários marxismos se deveu à própria dinâmica do capitalismo mundial e à aparição de novas contradições.


França: althusserianismo, desconstrução e renascimento
Durante as três décadas posteriores à libertação, a França chegou a desfrutar de uma primazia cosmopolítica no universo marxista. O declínio desta tradição não foi, como vimos, um assunto meramente nacional.
Como afirma Anderson (1988), o tema central do debate francês durante os anos quarenta e cinqüenta passava por entender a natureza das relações entre estrutura e sujeito na sociedade e na história. A influência filosófica mais importante do período era o existencialismo, cujas raízes encontravam-se no Kojève, Husserl e Heidegger, com sua ontologia acentuada do sujeito. Apesar de suas origens, o existencialismo francês alinhava-se com a esquerda e, em um momento em que a França debatia-se em turbulentas lutas de classe, tentava conciliar-se com a realidade estrutural do partido comunista. O resultado foi uma tentativa de recolocar as relações entre sujeito e estrutura como uma espécie de síntese entre marxismo e existencialismo, proposto por Sartre, De Beauvoir, Merleau-Ponty. Os debates foram de uma qualidade e intensidade pouco comum, constituindo um dos episódios mais ricos da história intelectual do pós-guerra. A culminação deste debate foi a publicação da Crítica da razão dialética de Sartre, cujo tema eram as interações entre práxis e processo histórico, entre indivíduos e grupos, e entre grupos e o prático-inerte, em uma história desencadeada pela escassez. Em Questão de método –publicado como prefácio à Crítica– Sartre refere-se essencialmente aos instrumentos teóricos necessários para compreender o significado total da vida do indivíduo, concebido como “universal singular”. Na Crítica tenta oferecer uma exposição filosófica das “estruturas formais elementares” de qualquer história possível, ou uma teoria dos mecanismos gerais de construção e subversão de todos os grupos sociais.
A história em si mesma, a “totalização diacrônica” de todas estas “multiplicidades práticas e de todas suas lutas”, devia ser o objeto de um segundo volume. O horizonte era compreender a verdade da humanidade como um todo –que tinha uma continuidade epistemológica com a verdade de uma pessoa. O projeto procurava elaborar uma história global cujo fim seria uma compreensão totalizadora do significado da época contemporânea, um projeto por certo monumental. Entretanto, o segundo volume escrito por Sartre foi abandonado, ficando inacabado. Neste ato de desistência, e no silêncio subseqüente, decidiu-se grande parte do destino da esquerda francesa e do marxismo. Doze anos depois, Sartre terminou sua carreira com um monumental estudo sobre Flaubert, que parecia anunciar a volta ao projeto biográfico, muito mais modesto, esboçado em Questões de método.
Contudo, todo o terreno de resposta teórica tinha ficado vazio. Em 1962, Lévi-Strauss publica O pensamento selvagem, duro ataque contra a Crítica da razão dialética, que continha uma antropologia completamente alternativa, e concluía com um ataque direto ao historicismo de Sartre, em nome das propriedades invariáveis da mente humana e da igual dignidade de todas as sociedades humanas. Desta forma, lançava por terra as pretensões da razão dialética e da diacronia histórica construídas por Sartre, reduzindo-as a uma mitologia do civilizado contraposto ao pensamento selvagem. “O fim último das ciências humanas não é construir o homem, e sim dissolvê-lo” (O pensamento selvagem). Quando em 1965 apareceu a réplica marxista, esta não foi um repúdio e sim uma confirmação da proposta estruturalista.
Em Ler O Capital (1967) e Pour Marx (1985), Althusser incorpora ao marxismo a crítica de Lévi-Strauss à história e o humanismo, reinterpretado agora como um anti-humanismo teórico para o qual a diacronia não era mais que um “desenvolvimento das formas” do conhecimento sincrônico. A inovação teórica que provocou Althusser exerceu grande influência na formação de uma nova geração de jovens marxistas, deslocando os teóricos anteriores como Sartre, mas também Lefebvre e Goldmann, entre outros. Althusser, retomando a visão de Lévi-Strauss, tentou resolver a complexa relação entre estrutura e sujeito, fazendo deste último um mero efeito ilusório das estruturas ideológicas. O Maio Francês, entretanto, colocaria o marxismo althusseriano em uma difícil encruzilhada: como explicar a irrupção espetacular de estudantes, operários e outros sujeitos coletivos. Althusser era o candidato para responder teoricamente à explosão política da luta de classes. Embora com dificuldades para explicar a mudança, a elaboração do Althusser ao menos contava com uma teoria da contradição e a sobredeterminação e, portanto, do tipo de “unidade de ruptura” que podia dar origem a uma situação revolucionária em uma sociedade dividida em classes. Entretanto, o resultado foi outro. Althusser tentou ajustar sua teoria concedendo um espaço ao papel das massas que, conforme reconhecia, “faziam a história”, embora “os homens e mulheres” não a fizessem. Todavia, a direção geral da obra althusseriana não foi reproblematizada. A introdução do problema do sujeito histórico na maquinaria da casualidade estrutural, iniciada em Ler O Capital, não conduziu a uma reelaboração teórica dos fundamentos do marxismo althusseriano, e sim à incoerência. A conseqüência disto foi o desaparecimento progressivo do marxismo althusseriano como corrente teórica de importância em meados da década de setenta (Anderson, 1988).
Ao longo dessa década, Paris foi finalmente normalizada depois dos levantes do Maio Francês, e muitos dos membros mais estridentes da geração de 68, de Kristeva ao Glucksmann, passaram para a ultradireita dos nouveaux philosophes. Foi então que as vozes de Lyotard, Derrida, Foucault, Baudrillard, Deleuze e Guattari passaram a dominar a vida intelectual francesa, e decretaram a “morte do sujeito” e o “fim do social”.
De todas as formas, alguns debates sobre o humanismo continuaram por um certo tempo, e deram lugar a interessantes pesquisas, como as de Lucien Sève em Marxisme et théorie da personnalité. A própria crítica do estruturalismo como ideologia da eternidade, de uma história que sucede imóvel, colocou a questão da historicidade em sua singularidade, sem recorrer a improváveis leis da história, e evidenciou a importância das formas como lógicas materiais (Lucien Sève, Structuralisme et dialectique). Entretanto, a estrutura finalista e as garantias do final comunista mantiveram de maneira dogmática as fecundas intuições da pluralidade das dialéticas. A partir de outras instâncias, mais sensíveis aos impasses do marxismo, buscou-se uma recuperação francesa da filosofia da práxis; em um momento paradoxal da crítica althusseriana, Gramsci alcançou na França certa importância para pensar uma análise hegemônica nas condições do capitalismo moderno em sua fase fordista (ver os trabalhos de Jacques Texier, Christine Buci-Glucksmann e André Tosel em Praxis. Vers une refondation en philosophie marxiste). A partir de outras instâncias reconstrutivas, fortemente teóricas, foram tentadas análises mais profundas, que procuravam ampliar o conhecimento da sociedade, mas sem conseguir sair de um certo isolamento, apesar de sua vitalidade. Tal é o caso de Henri Lefebvre, que ao analisar as formas concretas da modernidade capitalista (O direito à cidade e A produção do espaço) indicou, dentro do modo de produção estatal, os maiores obstáculos à emancipação, e mostrou a debilidade do marxismo ao tentar resolver o problema (De l’État) (Tosel, 2001a).
Dentro da retirada do marxismo francês, deve-se assinalar a importância do trabalho do Georges Labica que conseguiu levar por bom caminho a difícil tarefa do Dictionnaire critique du marxism (1982), em colaboração com o G. Bensussan, que permitiu a manifestação de uma pluralidade de marxismos.
Neste período de deslegitimação violenta do marxismo, manteve-se um marxismo subterrâneo pós-althusseriano que, apesar de não haver relação orgânica com a prática e a organização, pôde desenvolver-se em dois sentidos: por meio do descobrimento contínuo da complexidade de uma obra inacabada; e mediante a continuação de certa produtividade teórica. No primeiro sentido, destaca-se a importante contribuição de Jacques Bidet em Que faire du capital? Matériaux pour une refondation, que é uma análise crítica e uma reinterpretação geral da obra-prima marxista: verificando certas interpretações althusserianas, Bidet mostra como a dialética hegeliana é, ao mesmo tempo, obstáculo e oportunidade do método de exposição da crítica marxista, e propõe um reexame de todas as categorias do sistema –valor, força de trabalho, classes, salário, produção, ideologia, economia–, evidenciando que as aporias da concepção do valor-trabalho não podem ter resolução senão por meio de uma leitura indissociavelmente sócio-política, que obrigue a pensar uma economia efetivamente política do trabalho vivo. No segundo sentido, está a elaboração original de Étienne Balibar que, depois de tentar elucidar os conceitos fundamentais do materialismo histórico em sua contribuição a Ler O Capital, recolocou na discussão as categorias centrais sobre a temática da subsunção real, e orientou sua produção para ressaltar a permanência da luta de classes (“Plus-value et classes sociales” em Cinq études du matérialisme historique). Balibar abandonou de fato, nesses anos, um construtivismo dogmático para praticar um tipo de experimentalismo teórico de uso aporético, e problematizar as incertezas da teoria marxista do estado, o partido e a ideologia (“État, Parti, idéologie” en Marx et sa critique de la politique). A partir desta leitura de Marx, e depois de ter assimilado as teses do sistema-mundo de Wallerstein, Balibar mostra como a luta de classes relaciona-se com a gestão internacional da força de trabalho; como ela está duplamente subordinada pela produção de identidades imaginárias nacionais e étnicas; como o potencial de resistência das classes operárias está atualmente em perigo de ser transformado e alterado pelas formas nacionais e raciais; e, finalmente, como nacionalismo e racismo implicam-se um com o outro (Balibar e Wallerstein, Race, nation, classe. Les identités ambiguës). Também foram de importância os trabalhos do Nicos Poulantzas, quem, a partir de uma concepção extremamente abstrata, procurou fixar as linhas gerais de uma teoria estrutural da prática política (Pouvoir politique et classes sociales), e repensar as funções do estado de uma concepção relacional do poder (L’État, le pouvoir, le socialisme) (Tosel, 2001a).
Durante a década de noventa, produz-se um retorno do marxismo à cultura francesa. Marx transforma-se em, no mínimo, um clássico do pensamento. As revisões multiplicam-se. Sem dúvida, um dos trabalhos mais ativos na recuperação do legado de Marx foi o do Actuel Marx que, sob a direção de Jacques Bidet e Jacques Texier, organizou e publicou importantes colóquios
[7]. Texier continuou, também, com seus estudos sobre Gramsci, Marx e Engels (Les innovations d’Engels, 1885, 1891, 1895 e Révolution et démocratie chez Marx et Engels). Por sua vez, Bidet, em sua obra Théorie de la modernité (1990), propõe-se integrar o aporte de Marx no contexto mais amplo da filosofia política e das teorias sociais modernas. Para Bidet, é próprio da modernidade que a dominação articule-se de modo específico com uma forma de contratualidade que não pode deixar de afirmar suas exigências. Propõe-se assim a estabelecer a existência de um piso meta-estrutural comum, a “modernidade”, a partir do qual se possam pensar as condições de constituição de sistemas polarmente opostos, e as condições da passagem de uma a outra o interior das condições limite do mundo moderno. A este enfoque de modernidade corresponde uma definição de “liberdade dos modernos” que supera os limites liberais. Seu projeto consiste em levar as suas últimas conseqüências o elemento democrático da tradição liberal, reformulando, sob uma forma mais radical, o projeto socialista de Marx.
Toda uma série de trabalhos teóricos e acadêmicos demonstra o retorno do marxismo ao centro da vida intelectual francesa. Os trabalhos de Étienne Balibar propõem uma prática experimental que lhe permite re-colocar um Marx rico em tensões aporéticas e produtivas (La philosophie de Marx), e articular uma análise dos fenômenos de identidade e uma reapropriação do direito natural revolucionário, mas sem fundá-lo em um neocontratualismo social-liberal (Les frontières de la démocratie). Estes projetos de reconstrução fundam-se com base nas teorias da ação, consideradas, por sua vez, como uma análise crítica e fecunda de Marx, e impulsionam como contrapartida uma crítica marxista dessas teorias (por exemplo, André Tosel, L’esprit de scission). A questão ética reaparece nas obras do Lucien Sève (Pour une critique de la raison bioéthique) e Yvon Quiniou (Figures de la déraison politique). Manifesta-se também na renovação, no estudo de Marx sobre a problemática utópica, com os trabalhos de Michel Vadeie (Marx penseur du possible), Daniel Bensaïd (Marx l’intempestif. Grandeur et misères d’une aventure critique [XIX-XXe siècle]) e Miguel Abensour, o qual explora o questionamento de Marx sobre o político e sobre a vontade prática da emancipação (La démocratie contre l’État. Marx et le moment machiavélien). No mesmo sentido se dirige à defesa de Marx por Jacques Derrida (Spectres de Marx), que prevê o provir de um “espírito” do marxismo irredutível à necessária desconstrução da metafísica ocidental, e pleno de um novo internacionalismo (Tosel, 2001a).

A crise da filosofia da práxis na Itália

A vigorosa tradição do marxismo italiano, de grande originalidade e fortemente vinculada às lutas sociais, remonta a fins do século XIX. Labriola, filósofo de origem hegeliana, aderiu ao marxismo em 1890, e sua influência foi fundamental para o desenvolvimento posterior do marxismo. A obra da Labriola foi herdada e continuada por Mondolfo, outro filósofo de origem hegeliana, de grande importância para a geração de Gramsci.
Logo depois da experiência fascista, publicam-se pela primeira vez os escritos produzidos por Gramsci durante seu confinamento. A presença desta herança marxista nativa, que culminou na grande obra empreendida por Gramsci, ajudou a imunizar o marxismo italiano do pior do stalinismo soviético. Mas, por outro lado, a canonização póstuma de Gramsci serviu, paradoxalmente, para esterilizar a própria vitalidade da tradição italiana. A figura de Gramsci foi convertida em um ícone oficial, enquanto seus escritos eram esquecidos. Como resultado, a principal tendência teórica que se desenvolveu dentro do marxismo depois da Segunda Guerra Mundial foi uma reação contra a ascendência filosófica representada por Labriola e Gramsci.
O fundador da nova escola foi Galvano Della Volpe, filósofo afiliado ao PCI em 1944. A influência de Della Volpe foi escassa durante grande parte de sua vida, até depois da década de sessenta. Neste período, os temas filosóficos da escola começaram a adquirir ressonância entre membros mais jovens. Em particular, podia-se interpretar que a insistência filosófica na importância da “abstração científica determinada” característica da obra de Della Volpe implicava a necessidade de uma análise da sociedade italiana em termos das categorias “puras” do capitalismo desenvolvido, com alguns objetivos políticos correspondentemente “avançados” a serem perseguidos pela classe operária. Isto estava em oposição à ortodoxia do PCI, que sublinhava o caráter atrasado e híbrido da sociedade italiana, o qual exigia reivindicações mais limitadas, de tipo “democrático” mais que socialistas. Della Volpe e sua escola foram resolutamente anti-hegelianos, negativos em sua avaliação da filosofia de Hegel, e positivos em sua afirmação de que o pensamento do Marx representou uma ruptura completa com Hegel (ver Logica come scienza positiva). Colletti, discípulo de Della Volpe, escreveu o principal ataque contra o hegelianismo em Hegel e il marxismo, obra concebida como uma demonstração de que Hegel era um filósofo cristão intuitivo cujo propósito teórico era o aniquilamento da realidade objetiva e da desvalorização do intelecto, a serviço da religião, e que isso estava nas antípodas de Marx (Anderson, 1987).
O caso da Itália, nas décadas de setenta e oitenta, é singular; país do mais importante e liberal partido comunista europeu, rico em uma tradição marxista própria e forte, a da filosofia da práxis, conheceu uma dissolução rápida dessa tradição. A estratégia proclamada de construção contra-hegemônica se transformou, pouco a pouco, em uma simples política democrática de alianças eleitorais. O historicismo, mais togliatiano do que gramsciano, entrou em uma crise irreversível. Até esse momento, este tinha conseguido articular a perspectiva geral, abstrata, de uma transformação do modo de produção capitalista e a determinação de uma política de reformas supostamente para alcançar este fim, assim como brindar sua confirmação no movimento real, quer dizer, na força do partido e na realidade das massas. Se este historicismo evitou que o marxismo italiano conhecesse o Diamat soviético, e durante longo tempo evitou a reverência às leis históricas gerais, a previsão das condições de possibilidade do deslocamento revolucionário hegemônico acabou por diluir-se em uma tática sem outra perspectiva que a manutenção de um vínculo com o campo socialista, justificando a idéia de uma estratégica dupla.
As subseqüentes pesquisas de inspiração gramsciana estiveram guiadas por uma atualização cada vez mais democrática-liberal. Foram de importância as obras de especialistas cujo trabalho foi fundamental para a edição de Os Cadernos, por esclarecer a estrutura interna e o movimento do pensamento de Gramsci (Gerratanna, especialmente; Baladoni; Francioni; Lo Piparo; Paggi e Vacca, entre outros). Outras pesquisas também se centraram na análise dos textos de juventude de Marx, e nos manuscritos de 1861-1863. Mas, de fato, a filosofia da práxis perdeu o vínculo com o programa de análise que o tinha feito específico, e este foi tendencialmente reconduzido pelas incertezas com respeito a suas origens, em outras filosofias anteriores a Gramsci.
A esta diluição corresponde o desaparecimento de outra via alternativa que existia nestes anos, a elaboração de Galvano Della Volpe. A apelação metodológica dellavolpiana ao pensar o galileismo moral de Marx –autor de uma teoria científica humeana-kantiana da abstração determinada– termina por abandonar a dialética hegeliana-marxiana por considerá-la uma pura especulação metafísica, incapaz de pensar a lógica determinada do objeto determinado. Certos continuadores da obra de Della Volpe continuam trabalhando, mas o cientificismo deste foi traduzido à linguagem do empirismo de Popper, e retorna em polêmica anti-Marx. Exemplar neste sentido é a parábola de Lucio Colletti. Sua obra marxista se concentra em Hegel e no marxismo: recusando a dialética hegeliana entre entendimento analítico e razão dialética, sustenta a universalidade do método científico por meio da hipótese experimental. Marx fundou uma sociologia que explicita as leis do sistema capitalista, ao as vincular à generalização do trabalho abstrato e à reificação que esta implica. A teoria tem como horizonte a luta contra a realização dessa abstração, contra essa alienação-reificação. A liberação deve desembocar sobre outra legalidade. Mas, rapidamente, Colletti rechaça a cientificidade desta sociologia apoiada na teoria do valor trabalho, e separa crítica romântica da alienação e análise objetivo. Particularmente, o autor discute a teoria da contradição dialética, que ele substitui pela oposição real. As coisas aceleram-se, e a teoria do valor trabalho é rechaçada a partir do problema clássico da transformação de valores em preços. Assim, partindo de um marxismo anti-revisionista e científico, Colletti sai por etapas do marxismo para alinhar-se com a epistemologia defendida por Popper e as opções políticas a favor de uma engenharia social para reformar a sociedade (Intervista filosofica-politica; Tra marxisme e no, e Tramonto dell’ideologia) (Tosel, 2001a).
O marxismo italiano se encontrou, em meados da década de setenta, em um debate que punha o acento em uma série de questões de teoria política, mostrando as debilidades do historicismo e o caráter híbrido de uma teoria política suspensa entre a afirmação da democracia parlamentar e a crítica dos impasses desta última. Norberto Bobbio colocou em questão, por meio de diversas intervenções, uma série de temas importantes para a problemática marxista. As teses de Bobbio eram as seguintes: em primeiro lugar, não existiria uma teoria política marxista, mas sim uma crítica da política que nunca teria respondido à questão de precisar as funções sociais que o estado socialista deveria assumir. A resposta histórica dada pela experiência soviética seria a de um despotismo centralizado que implicaria um retrocesso das liberdades civis; a teoria marxista fetichizada pela teoria do partido não teria inovado na invenção de mecanismos democráticos de poder. Em segundo lugar, a via nacional ao socialismo e à temática da democracia progressiva do PCI teriam conjugado bem o respeito ao pluralismo político e a situação constitucional, mas, ao manter a referência a uma democracia soviética, teriam exposto uma questão sobre a manutenção das instituições liberais uma vez conquistado o poder. Por último, os teóricos marxistas, com exceção de Gramsci, não teriam contribuído com a teorização das dificuldades da democracia moderna, nem exposto questões relevantes (Il Marxismo e lo Stato). O marxismo italiano não pôde responder de maneira criativa a estas questões, e terminou por concluir, junto com a direção do partido, que só uma teoria política jusnaturalista liberal-social podia inspirar a ação de um partido de massas que foi reduzido, por uma evolução sociológica, a funcionar como os partidos de opinião, centrados em reformas democráticas consistentes em melhorar as condições de vida dos mais necessitados. Em síntese, o marxismo italiano diluiu em grande parte sua influência ao metamorfosear-se com o social-liberalismo e aceitar o liberalismo de teóricos da justiça ao estilo de Rawls, sem sequer conservar o sentido das aporias expostas por Bobbio. Exemplo desta evolução é o caminho de Salvatore Veca, durante muito tempo diretor da Fundação Feltrinelli, que, partindo de uma defesa da cientificidade de Marx, em um estilo dellavolpiano (Saggio sul programma scientifico di Marx), transforma-se no introdutor de Rawls e do liberalismo de esquerda (La società giusta; Una filosofia pubblica), desenvolvendo uma crítica de Marx fundada na denúncia da ausência de uma verdadeira teoria da justiça (Tosel, 2001a).
Apesar dessa desagregação espetacular do marxismo italiano, não se pode deixar de reconhecer a importância de trabalhos como os de Domenico Losurdo, cuja análise das formas políticas liberais atuais enriqueceram a contracorrente do pensamento liberal ocidental (Democrazia o Bonapartismo e Controstoria del liberalismo). Este historiador da filosofia, com seus estudos consagrados a Kant, Hegel, Marx, e à história da liberdade na filosofia alemã clássica do século XIX, oferece uma contra-história da tradição liberal, e mostra que, longe de coincidir com a história da liberdade, a tradição liberal definiu os direitos do homem como aqueles do proprietário privado, negando a universalidade do conceito do homem que supostamente afirmava. A história dos direitos do homem entrecruza-se com a história da luta de classes e de massas, inspirada em uma tendência dominante da modernidade, o humanismo civil ou republicanismo plebeu, cuja inspiração se pode rastrear até Rousseau, Hegel e Marx. A resistência historiográfica jogou também o papel de uma base teórica para o relançamento desta tendência e deste marxismo, convidando-o a realizar sua autocrítica. Em outros trabalhos, Losurdo analisa a conjuntura política italiana, e estabelece um vínculo entre o liberalismo federalista e o pós-fascismo (La Seconda Repubblica. Liberismo, federalismo, postfascismo). Em Marx e il bilancio storico del Novecento, apresenta-se um balanço histórico-teórico do comunismo e do marxismo em nosso século, reivindicando o conteúdo emancipador inicialmente existente na revolução de outubro, e procedendo ao mesmo tempo à crítica dos elementos da utopia abstrata em Marx no concernente ao estado.
Nos últimos anos, proliferou no marxismo italiano um esforço de renovação. Com base na obra de historiográfica crítica de Losurdo, e na escola marxista da história do pensamento, desenvolveram-se tentativas de reconstrução sistemática, duas delas particularmente importantes. A primeira é a de Giuseppe Prestipino que reformula depois de vários anos uma reconstrução da teoria dos modos de produção pensados em termos de blocos lógico-históricos: em toda sociedade humana se pressupõe a existência de um patrimônio antropológico-histórico constituído por uma série de sistemas: produtivo, social, cultural e institucional. Estes sistemas podem ser combinados no curso da história em estruturas diferentes, ou em função do sistema dominante no modelo teórico de uma formação dada. A tese de uma dominância invariável da base produtiva sobre a superestrutura cultural é própria de um bloco da primeira modernidade. Na atualidade, estão em concorrência o bloco moderno e o pós-moderno. O primeiro, dominado pelo elemento cultural sob a forma de uma racionalização omnicomprensiva. O bloco pós-moderno estaria dominado pela instituição pública, no estado mais elevado do sistema ético-jurídico supra-estatal e supranacional, que teria por tarefa guiar hegemonicamente os outros elementos (Da Gramsci a Marx. Il blocco logico-storico; Per una antropologia filosofica; Modelli di strutture storiche. Il primato etico nel postmoderno). A segunda tentativa de reconstrução sistemática é a de Constanzo Preve que, partindo de um programa de reformulação sistemática da filosofia marxista sobre a base luckacsiana da ontologia do ser social, integrando a temática da utopia ética, e centrando-se sobre a temática de uma ciência althusseriana do modo de produção (Il filo di Arianna), confronta-se com as dificuldades de um certo ecletismo. Suas últimas pesquisas o fazem renunciar ao programa de uma ontologia do ser social, e redefinir uma filosofia comunista, criticando as noções de classe-sujeito, paradigma do trabalho e necessidades, em uma confrontação com os teóricos da pós-modernidade (Il tempo della ricerca. Saggio sul moderno, il post-moderno e la fine della storia) (Tosel, 2001a).

A teoria crítica da Escola de Frankfurt
Desde seu início em 1924, o Instituto de Pesquisas Sociais de Frankfurt procurou um modelo de organização do trabalho científico que, partindo do conceito de “filosofia social” (Sozialphilosophie), tentasse elaborar uma teoria do conjunto da sociedade mediante a integração das pesquisas multidisciplinares (economia, sociologia e filosofia), de forma tal a explicar as novas condições de reprodução do capitalismo: sua capacidade de superar as crises e as novas formas de ideologia e cultura.
A evolução do programa de pesquisas do Instituto se relacionou com uma série de mudanças nas experiências históricas do conflituoso período: a análise da situação na União Soviética a partir da consolidação do stalinismo, a derrota do movimento operário na República de Weimar, e a ascensão do nazismo. Estes sucessos levaram a teoria crítica a reformular a compressão que tinha de si mesma, redefinindo as relações entre teoria e prática, e entre teoria e sujeito revolucionário. Também foi reconceitualizada a relação entre teoria crítica e marxismo
[8].
Esta reformulação da relação entre teoria e práxis, à luz da derrota da classe trabalhadora na Alemanha e do terror stalinista, já pode ser rastreada no ensaio do Horkheimer, Teoria tradicional e teoria crítica, de 1937. Neste trabalho, o autor enfatiza o possível conflito da teoria da sociedade, com um propósito emancipador, e a consciência empírica da classe social que seria o agente da transformação emancipadora. A relação entre o teórico e as forças sociais de transformação seria conflituosa por natureza. Horkheimer percebe que a economia é a causa fundamental da infelicidade humana. Entretanto, também se dá conta de que a teoria das crises econômicas já não é suficiente para analisar as contradições do período entre-guerras; e, como a transformação histórica tem uma dimensão cultural, os fenômenos de crise não são experimentados só como disfuncionalidades econômicas, também o são como crises vividas. Horkheimer tenta resolver teoricamente uma série de tensões que aparecem. Por um lado, reconhece que não só não há convergência entre o ponto de vista teórico e dos movimentos emancipadores, mas também, uma distância cada vez maior. Por outro lado, o autor alemão aferra-se firmemente à crítica da economia política como modelo de pesquisa, e insiste nas influências emancipadoras inerentes a este tipo de crítica. Este equilíbrio sustentado por Horkheimer em seu ensaio de 1937 foi perturbado pelo estalo da Segunda Guerra Mundial, momento a partir do qual se produz um questionamento profundo do modelo marxista. A passagem do modelo da “teoria crítica” para a “crítica da razão instrumental” se produziu quando esta divisão crescente entre teoria e prática levou a um questionamento da própria crítica da economia política. A transformação da natureza do capitalismo entre as duas guerras, e as conseqüências disto para a crítica marxista da economia política, foram o ponto central no desenvolvimento analítico da Escola de Frankfurt (Benhabib, 1999).
As funções do mercado foram transformadas pelo capitalismo de estado. A estatização crescente da sociedade e as novas funções do estado criaram estruturas institucionais que requeriam novas categorias de análise. A crítica marxista da economia política foi também uma crítica da formação social capitalista como um tudo. Na fase do capitalismo liberal, era possível uma crítica da formação social por meio da crítica da economia política, porque as relações sociais de produção definiam o elemento institucional fundamental do capitalismo liberal, ao legitimar um certo padrão de distribuição de riqueza, poder e autoridade; e, por sua vez, porque as relações de intercâmbio no mercado capitalista davam legitimidade normativa a essa sociedade, na medida em que os diferenciais resultantes de poder e privilégio sociais eram vistos como conseqüências das atividades de indivíduos que negociavam livremente. Com o desaparecimento do mercado autônomo, a crítica da economia política já não podia servir de base para uma crítica da nova formação social. Dito de outra maneira, uma teoria crítica do capitalismo de estado não pode ser uma crítica da economia política do capitalismo de estado. Com o desaparecimento do mercado autônomo em um sistema de controles estatais diretos, a distribuição da riqueza, o poder e a autoridade politizam-se. Essa distribuição já não é mais conseqüência das leis do mercado, mas sim de diretrizes políticas. Para analisar a estrutura social do capitalismo não se necessita uma economia política, mas sim uma sociologia política. Com a politização do mercado, os ideais normativos e as bases ideológicas do capitalismo liberal transformaram-se. As normas de legitimação do capitalismo de estado precisavam ser novamente analisadas. Com a decadência do mercado autônomo, a “legalidade” também declinou; o liberalismo se transformou em autoritarismo político e, eventualmente, em totalitarismo.
O núcleo do que será conhecido como “a teoria social crítica da Escola de Frankfurt” será a análise da transformação do capitalismo liberal do século XIX em democracias de massas, e também em sociedades totalitárias do tipo fascista e nazista. O texto em que o novo paradigma da teoria crítica é melhor desenvolvido é Dialética do esclarecimento (1944). Neste texto, Adorno e Horkheimer afirmam que a promessa iluminista de liberar o homem da tutela a que ele mesmo se expõe não pode ser cumprida por meio da razão, que é um mero instrumento de autopreservação. A história do Odisseu
[9] revela a marca escura na constituição da subjetividade ocidental: o medo que eu tenho do “outro” –identificado com a natureza– foi superado, no decorrer da civilização, pela dominação do outro. Assim, como o outro não é completamente estranho, a dominação da natureza só pode significar autodominação. Entretanto, como mostrava a regressão civilizatória manifesta na barbárie do nacional-socialismo, a razão ocidental não tinha conseguido superar o temor original que a humanidade experimentava com respeito ao outro –o judeu é o outro, o estranho, humano e não humano ao mesmo tempo. O interesse na história subterrânea da civilização ocidental, que o corpo do texto desvenda, é o princípio metodológico que norteia a história da razão ocidental. A história do Odisseu e a do holocausto, o mito que é o Iluminismo e o Iluminismo que se transforma em mitologia, são os marcos da história ocidental: a gênese da civilização e sua transformação em barbárie. Adorno e Horkheimer rastreiam a irracionalidade e o racionalismo cultural até suas origens, quer dizer, até o princípio de identidade, que é a estrutura profunda da razão ocidental. A estrutura aporética de uma teoria crítica da sociedade, tal como concebida pelos autores, torna-se evidente. Se a promessa do Iluminismo e da racionalidade cultural revela apenas a culminação da lógica identificatória constitutiva da razão, a teoria da dialética do Iluminismo, feita com os instrumentos dessa mesma razão, perpetua a própria estrutura de dominação que condena. A crítica do Iluminismo cai na mesma aporia que o próprio Iluminismo. Assim, a conseqüência mais ampla do projeto de crítica do Iluminismo é a própria transformação do conceito de crítica. A transformação da crítica da economia política em crítica da razão instrumental marca uma mudança no objeto da crítica, assim como em sua lógica. Os três aspectos da crítica são postos em questão: crítica imanente, crítica desfetichizada e crítica como diagnóstico da crise. A crítica imanente transforma-se em dialética negativa; a crítica desfetichizada torna-se crítica da cultura, e o diagnóstico da crise é convertido em uma filosofia retrospectiva da história, com propósitos utópicos (Benhabib, 1999)[10].
Em suma, para Adorno e Horkheimer a sujeição ao mundo tal como aparece não é mais uma ilusão real que pode ser superada pelo comportamento crítico e pela ação transformadora: é uma sujeição sem alternativas, porque a racionalidade própria da teoria crítica não encontra bases concretas na realidade social do capitalismo administrado, dado que já não são discerníveis as tendências reais da emancipação. Assim, o próprio projeto crítico encontra-se em uma aporia: se a razão instrumental for a única racionalidade do capitalismo administrado, então como é possível a crítica à racionalidade instrumental?. Adorno e Horkheimer assumem essa aporia dizendo que ela é, no capitalismo administrado, a condição de uma crítica cuja possibilidade se tornou extremamente precária (Nobre, 2003).
Habermas foi quem, logo depois de Adorno e Horkheimer, deu sua forma concreta ao projeto de continuação crítica da Escola de Frankfurt. A teoria de Habermas significou, por um lado, um retorno ao programa original de uma teoria crítica da sociedade. Por outro, mediante sua recepção da filosofia analítica da linguagem, sua sociologia funcionalista e sua teoria weberiana do processo de racionalização, Habermas fez valer distinções categoriais, tanto frente à primeira teoria crítica, como à tradição marxista em conjunto, por meio das quais ficou aberto para a teoria crítica um modo de escapar do beco sem saída do negativismo dialético, sem necessidade de retornar ao positivismo pseudodialético.
Para Habermas, apoiar conscientemente a possibilidade da crítica em uma aporia –como no caso de Adorno e Horkheimer– significa pôr em risco o próprio projeto crítico. Isto fragiliza tanto a possibilidade de um comportamento crítico em relação ao conhecimento, como a orientação para a emancipação. Habermas propõe um diagnóstico divergente em relação àquele apresentado na Dialética do esclarecimento. Neste sentido, para Habermas trata-se de constatar que o enfrentamento das tarefas clássicas que a própria teoria crítica colocou-se desde suas origens requeria uma ampliação de seus temas e a busca de um novo paradigma explicativo. Já que, se os parâmetros originais da teoria crítica levavam a que fosse posta em risco a própria possibilidade da crítica da emancipação, são esses parâmetros os que têm que ser revisados, sob pena de perder exatamente essa tradição de pensamento. Para o Habermas, são as próprias formulações originais de Marx as que têm que ser abandonadas. E isso não porque pretenda abrir mão da crítica, mas sim porque, para ele, os conceitos originais da teoria crítica não são suficientemente críticos frente à realidade, porque ignoram aspectos decisivos das relações sociais.
Em Teoria da ação comunicativa, Habermas pretende reconstituir a unidade da razão dissociada pela modernidade. Para isso, parte do diagnóstico segundo o qual a racionalidade instrumental é uma racionalidade truncada. A modernização fez triunfar a racionalidade do entendimento da ciência e da técnica, um dos aspectos da razão do século XVIII. Para Horkheimer, a racionalidade industrial encarnava esta razão truncada. Mas a Teoria da ação comunicativa não compartilha as conseqüências de Dialética do esclarecimento. Para escapar das aporias desta obra, Habermas formula um novo conceito de racionalidade. Para o autor, a “racionalidade instrumental”, que é identificada por Adorno e Horkheimer como a racionalidade dominante e, por isso, objeto por excelência da crítica, pode ser controlada. Para resolver este problema, Habermas formula uma teoria da racionalidade dupla, uma racionalidade instrumental e uma racionalidade comunicativa (ver Habermas, 2003). Assim, pretende demonstrar que a evolução das formas de racionalidade leva a uma diferenciação progressiva da razão humana em dois tipos de racionalidade, imanentes às formas de ação humana. A ação instrumental, em que o agente calcula os melhores meios para alcançar determinados fins, está orientada pelo êxito. Em contraste com este tipo de racionalidade, surge a racionalidade própria da ação comunicativa, aquela orientada ao entendimento e não à manipulação de objetos e pessoas com vistas à reprodução material da vida. A distinção de Habermas entre “sistema” e “mundo da vida” deriva da necessidade de um conceito de racionalidade complexo, em que a racionalidade instrumental passa a estar limitada, de modo a não anular as estruturas comunicativas profundas presentes nas relações sociais. O objetivo do Habermas é mostrar as vertentes do projeto moderno que não foram continuadas; explorar as interrupções, descontinuidades e potencialidades que permanecem ocultas. Frente às aporias que surgem na análise do Iluminismo, existe uma alternativa ainda inexplorada do projeto moderno (Nobre, 2003).
À segunda geração da Escola de Frankfurt, sucede hoje a terceira, composta pelos alunos de Habermas (Axel Honneth), Schmidt (Matthias Lutz-Bachmann, Gunzelin Schmid Noerr) e Wellmer (Martin Seel), os quais fizeram suas primeiras armas nos debates na década de oitenta.
Axel Honneth, talvez o membro mais importante da teoria crítica desta geração, foi assistente de Habermas no Instituto de Filosofia da Universidade de Frankfurt, sucedeu-o em seu posto na Universidade, e logo se transformou em diretor do Instituto de Pesquisas Sociais. Honneth continuou com o trabalho de Habermas, de uma posição crítica. Assim como Habermas apresentou sua teoria como uma solução às aporias dos trabalhos de Adorno e Horkheimer, Honneth tenta demonstrar que a solução habermasiana expõe novos problemas que precisam ser resolvidos filosoficamente. Um dos elementos centrais da crítica a Habermas é o que Honneth chama déficit sociológico; déficit que fica demonstrado na distinção dual, carregada de ambigüidades, entre sistema e mundo da vida, e no entendimento habermasiano da intersubjetividade comunicativa, que não é estruturada pela luta e pelo conflito social. Esta distinção procurou garantir tanto a possibilidade de uma limitação da razão instrumental como a perspectiva da ação emancipatória, tentando escapar às aporias que enfrentaram Adorno e Horkheimer. Assim, Habermas justificou também a necessidade da racionalidade instrumental como elemento de coordenação da ação, indispensável para a reprodução material da sociedade. Para isso foi obrigado, segundo Honneth, a neutralizar normativamente o sistema, de modo a torná-lo contrário à lógica comunicativa. Com isto, tornou-se incapaz de pensar como o próprio sistema e sua lógica instrumental são resultados de conflitos permanentes, capazes de moldá-lo conforme as correlações de forças sociais. Se concorda com Habermas na necessidade de construir uma teoria crítica em bases intersubjetivas, distancia-se dele ao defender a tese de que a base da interação social é o conflito, e sua gramática, a luta pelo reconhecimento. Honneth coloca o conflito social como objeto central da teoria crítica, e busca extrair deste conflito os critérios normativos de sua teoria (Nobre, 2003).
O pensamento de Wellmer deve ser entendido como originado no giro que a obra de Habermas imprime à tradição crítica frankfurtiana. Tem como marco, em certo modo, a Teoria da ação comunicativa, mas Wellmer é também discípulo de Adorno, e a obra deste é um ponto de referência essencial. Frente à idéia de Habermas de uma reconciliação da modernidade consigo mesma, Wellmer desenvolve uma imagem distinta, influenciado pelo pensamento de Adorno, Wittgenstein e Heidegger, e projeta a imagem de uma modernidade não só não reconciliada consigo mesma, mas também de uma “modernidade irreconciliável” –como aparece no subtítulo do livro.

A dialética do desgarramento e reconciliação, em cuja perspectiva normativa a tradição hegeliana-marxiana de pensamento crítico enfocou desde um princípio o desenvolvimento da modernidade, já não pode resolver mediante a utopia apoiada na idéia de uma reconciliação radical que a modernidade tivesse que projetar desde si mesma [...] uma idéia de liberdade racional no mundo moderno só é possível sobre a idéia de uma constante liberação ou produção de desgarramentos e dissociações [...] isto constitui a intransponível negatividade das sociedades modernas: as tentativas de transbordar essa negatividade em uma forma existente ou futura de liberdade comunal só é possível ao preço da destruição da liberdade individual e comunal (Wellmer, 1996).

Para Wellmer esta modernidade como projeto inacabado significa o final da utopia, entendida como consumação do telos da história, mas este final deve entender-se, também, como princípio de auto-reflexão da modernidade, de uma nova compreensão e liberação dos impulsos radicais do espírito moderno, em sua fase pós-metafísica.

A Escola de Budapeste
Toda uma série de obras tentou impor à ortodoxia esgotada do marxismo-leninismo uma crítica de seus pressupostos, e responder sua pretensão de ser a verdade única. Entre estas obras, destacam-se particularmente as de Lukács, e logo as de seus discípulos, que tentaram assentar as bases teóricas de um relançamento democrático do socialismo real.
História e consciência de classe é, sem dúvida, um dos eventos mais importantes na história do marxismo, e um texto fundador de toda uma corrente de pensamento ao interior do marxismo ocidental
[11].
Lukács redescobre a idéia de que uma construção social, o mercado, apresenta-se frente aos sujeitos como uma necessidade natural, que impõe uma forma a sua vida à qual não são capazes de resistir. Em História e consciência de classe, recuperando as noções de Marx de alienação e fetichismo da mercadoria, Lukács denomina este processo “reificação”, a transformação de uma instituição ou ideologia criada pelo homem em uma força que controla os seres humanos. A partir desta sensação de debilidade, crescem a deferência à hierarquia, a aceitação da burocracia, a ilusão na religião, que outros relatos da consciência operária já tinham mostrado. Entretanto, nas mãos de Lukács, estes elementos recebem um fundamento real na experiência diária dos trabalhadores sob o capitalismo (Rees, 2000).
Como afirma Anderson (1987), Lukács colocou Hegel em uma posição dominante na pré-história do pensamento marxista. A influência de Hegel foi mais ampla que uma mera atribuição genealógica; duas das teses básicas de História e consciência de classe provinham do pensamento hegeliano: a idéia do proletariado como o “sujeito-objeto idêntico da história”, cuja consciência de classe superava o problema da relatividade social do conhecimento; e a tendência a conceber a “alienação” como uma objetivação externa da objetividade humana, cuja reapropriação seria um retorno a uma antiga subjetividade interior, o que permitiria Lukács identificar a conquista por parte da classe operária de uma verdadeira consciência de si mesma, com a realização de uma revolução socialista.
Reexaminando seu próprio projeto teórico de História e consciência de classe (1923), Lukács critica o weberianismo particular de sua juventude esquerdista, um weberianismo romântico, centrado na denúncia da racionalização-alienação capitalista. O pensador húngaro renuncia à dialética sujeito-objeto encarnada na consciência de classe do proletariado, e deixa de lado sua exaltação da subjetividade revolucionária de uma classe capaz de pôr fim à ação abstrata da mercadoria e de superar a racionalização capitalista, identificada com um mecanismo socioeconômico identificado, por sua vez, com a reificação. Obcecado pelos fracassos da burocracia socialista em sua tentativa de realizar o conteúdo democrático radical desta consciência de classe, Lukács propõe uma reconstrução ontológica da teoria, cuja meta seria constituir uma ética materialista-dialética que normatizasse a ação democrática do estado comunista.
Para o Lukács de A ontologia, a obra de Marx contém um fundamento ontológico que lhe permite ser uma alternativa tanto à ontologia especulativa, como a neopositivista. O ser social constitui um nível da objetividade. O fato essencial desse ser social é o trabalho que, de uma vez, pressupõe e fixa os outros níveis da objetividade. A crítica lukacsiana dirige-se tanto para o capitalismo como para o socialismo; o modo de produção capitalista produz estranhamentos específicos a partir da coação que produz a busca de mais-valia relativa; a sociedade socialista, por sua vez, repousa sobre objetivações específicas que impedem a realização de uma práxis que articule objetivação das capacidades de trabalho e conexão das formas do ser social em seus diversos níveis. Lukács critica o economicismo do materialismo histórico stalinista retornando a Marx e utilizando, de maneira crítica, as categorias hegelianas ou “determinações reflexivas” que constituem a práxis humana como auto-realização das capacidades humanas na unidade da apropriação da natureza e a objetivação nas relações sociais. Assim, a luta contra a manipulação ontológica radical articula a crítica do capitalismo estendido à esfera de reprodução da subjetividade e o combate contra as formas degeneradas do socialismo, confiando ainda na capacidade de auto-reforma do partido-estado (Tosel, 2001b).
Alunos, discípulos e colegas do velho Lukács na Hungria continuaram com interesse o projeto teórico de seu professor. Ágnes Heller, Ferenc Fehér, György Márkus e István Mészáros, críticos do regime comunista, foram, em diferentes períodos, deslocados da Universidade de Budapeste. Estes filósofos, que seguiram caminhos diferentes, tinham em comum a vontade de participar daquilo que devia ser uma crítica, ou autocrítica, da ortodoxia marxista, e uma tentativa de reformá-la. Como afirma Tosel (2001b), sua reflexão se divide em dois períodos: o primeiro se caracteriza pela busca de uma reforma do marxismo em torno de uma antropologia social integrada por vários aspectos do liberalismo político; no segundo período se produz um elogio mais aberto do liberalismo que os conduz, com a exceção de Mészáros, fora do marxismo.
Em um primeiro momento, a busca filosófica passa por explorar a perspectiva de uma ontologia do ser social contra a ortodoxia marxista-leninista, repensando o aporte marxista desde uma crítica da ordem sócio-político dominado por um partido-estado imobilizado em sua pretensão de exercer um papel dirigente, e incapaz de realizar uma análise da realidade social e política que o determinam. O caminho originalmente eleito consistiu em uma inflexão antropológica de perspectiva lukacsiana, centrada na noção de necessidades radicais dos indivíduos, que se manifestam na vida cotidiana. Com a Teoria das necessidades em Marx, cujo objetivo é elaborar uma antropologia crítica que considere a essência humana mutável, Heller inaugura uma série de trabalhos sobre a filosofia contemporânea que se distancia da ontologia lukacsiana, vista como muito dominada por um paradigma da produção incapaz de integrar a diversidade da poiesis-práxis humana, mantendo a importância da vida cotidiana como o lugar onde se realizam as empresas humanas (Tosel, 2001b). Para Heller, a vida cotidiana possui uma universalidade extensiva; constitui a mediação objetivo-ontológica entre a simples reprodução espontânea da existência física e as formas mais altas da genericidade, porque nela, de forma ininterrupta, as constelações das tendências apropriadas da realidade social, a particularidade e a genericidade atuam em sua inter-relação imediatamente dinâmica (ver Heller, 1994). As obras posteriores a Sociologia da vida cotidiana; Instinto, agressividade e caráter, e Uma teoria da história continuam mantendo a importância da vida cotidiana como o lugar onde se realizam as empresas humanas. György Márkus, por sua vez, em Language and Production, realiza a crítica mais mordaz do paradigma da produção, retomando o giro lingüístico na filosofia, já problematizado por Habermas e pela hermenêutica. O autor mostra como o giro lingüístico tem incontestável pertinência a partir de uma idealização das virtudes da discussão e do consenso. O paradigma da produção proposto por Marx deixa ao descoberto a construção da forma comunista, pois esta radicaliza a produção pela produção ao separar todas as formas de dominação.
Os teóricos da Escola de Budapeste, em sua análise das sociedades socialistas, criticam o materialismo histórico ortodoxo por sua incapacidade para compreender a realidade destas sociedades. Heller, Márkus e Fehér publicaram Dictatorship over needs, obra que pode ser considerada como o ponto culminante da crítica das sociedades socialistas irremediavelmente bloqueadas. O socialismo real seria irreformável, contrariamente ao que pensava Lukács. A supressão do mercado tinha coincidido com a supressão da autonomia da sociedade civil em favor do estado, e o plano de produção e distribuição, considerado pela ortodoxia marxista-leninista como o fundamento econômico do socialismo, era organicamente incompatível com o pluralismo, a democracia e as liberdades. A substituição da propriedade privada pela propriedade do estado só podia desembocar na ditadura sobre as necessidades, que é a nova antropologia das sociedades socialistas. Os produtores são assim submetidos pelos mecanismos desta ditadura a uma nova classe, a burocracia do partido. Esta crítica retoma alguns dos elementos da crítica liberal, e uma conclusão natural leva a defesa do mercado e da espontaneidade da sociedade civil. Entretanto, não terá que esquecer que, para Heller, a exigência de uma democratização radical constitui a outra lógica ativa da modernidade, e que está na ordem do dia o imperativo categórico-utópico de satisfazer, prioritariamente, as necessidades dos mais pobres em todos os países (Tosel, 2001b).
O segundo período destes pensadores abre um capítulo do pós-marxismo. Ágnes Heller elabora uma obra múltipla e original, próxima a Habermas, centrada na urgência de elaborar uma teoria da modernidade. A tentativa teórica procurava confrontar a tradição marxista com a experiência comunista histórica, insistindo no caráter central do indivíduo, reformulando o conceito de práxis, definido como uma atividade social orientada a um propósito no qual o homem realiza as potencialidades de seu ser social, que é seu fim em si mesmo. Estas potencialidades se realizariam em uma unidade complexa de três dimensões: a criação de um mundo especificamente humano, a constituição da liberdade pela luta e pela conexão com a natureza humanizada. Depois do The power of the shame. Essays on rationality, e até A theory of modernity, Ágnes Heller elabora uma teoria da racionalidade fundada na distinção de três esferas de objetivação: a objetivação em si como a priori da experiência humana (linguagem comum, objetos produzidos para o uso humano); a objetivação para si, tradução antropológica do espírito absoluto hegeliano (religião, arte, ciência, filosofia); a objetivação em si e para si (sistema de instituições políticas e econômicas) (Tosel, 2001b).
István Mészáros, o outro grande pensador da escola, rechaça precisamente este afastamento da instância especificamente marxista em relação à crítica da economia política, em proveito de uma teoria normativa das lógicas axiológicas da modernidade. Tendo sido o primeiro a divergir, é o único que manteve um vínculo direto com Lukács e Marx. Mészáros está mais interessado em explorar um marxismo da terceira época que em uma via pós-marxista. Para o pensador húngaro, o primeiro marxismo é o de Lukács de História e consciência de classe, que explorou a tensão trágica entre as perspectivas universais de socialismo e os limites imediatos da atualidade histórica (o fracasso da revolução no ocidente, o socialismo em um só país). O segundo marxismo é o marxismo-leninismo, com suas dissidências (Bloch, Gramsci, o segundo Lukács). Este marxismo repousa sobre a forma de partido-estado que bloqueia a auto-atividade materialmente fundada dos trabalhadores; critica o capitalismo sem ir mais à frente do império do capital. O marxismo da terceira época, busca entender a forma do processo pelo qual o capitalismo, como forma mais recente de produção do capital, sucede integração global e leva a seu limite o capital como modo de controle, regulando a totalidade das relações sociais (Tosel, 2001b).
Mészáros mostra que o socialismo soviético repousou em uma nova forma de personificação do capital. Por personificação deve-se compreender uma forma de imposição dos imperativos objetivos como comandos sobre o sujeito real da produção. O capital é um sistema sem sujeito que inclui uma personificação dos sujeitos, chamado a traduzir os imperativos em direção prática, sob pena de exclusão. O capital personifica-se na força de trabalho, destinada a entrar em uma relação contratual de dependência econômica regulada politicamente. A União Soviética realizou uma nova forma de personificação do capital como modo de obter seu objetivo político de negação do capitalismo: esta nova personificação inventou um tipo de controle, onde o objetivo era a taxação forçada da extração de mais-produto por parte do partido, que se justificava em nome de superar os países capitalistas. A implosão do sistema soviético só pode ser entendida como parte essencial de uma crise sistêmica. Pois a solução soviética surgiu como meio de superar, em seu próprio ambiente, uma grande crise capitalista, mediante a instituição de um modo pós-capitalista de produção e intercâmbio, via a abolição da propriedade privada dos meios de produção. Mas a solução soviética não foi capaz de erradicar ao capital do sistema pós-capitalista de reprodução sócio-metabólica. Assim, continuou sendo operacional somente até que a necessidade de avançar beyond capital surgiu como desafio fundamental na ordem global do período. É por isso que o fim do experimento pós-capitalista soviético foi inevitável (ver Mészáros, 2003; 2004).
Para o Mészáros, a característica que define fundamentalmente nossa época, em contraste com as fases anteriores do desenvolvimento capitalista, é que vivemos nas perigosas condições da “crise estrutural do sistema de capital como um todo” (Mészáros, 2004). Em outras palavras, a crise sistêmica que sofremos é particularmente grave; não pode ser medida pelos padrões das crises passadas. A época de “crise estrutural” do sistema do capital, diferentemente de crises conjunturais do capitalismo antes enfrentadas, e mais facilmente superadas, traz consigo as conseqüências mais radicais para nosso presente e futuro. Assim, a crise estrutural do capitalismo é a condição negativa de uma renovação do marxismo. O marxismo tem, a partir desta crise estrutural, uma nova justificação histórica, um objeto para sua análise e a ocasião para uma autocrítica radical que é, ao mesmo tempo, a crítica da ordem capitalista. Existe também o terreno para pensar em uma alternativa global necessária e em um novo sujeito da emancipação; a emergência de novos movimentos sociais e novas práticas parece mostrar o caminho para superar os impasses monstruosos da organização do partido-estado. Ali se joga a possibilidade de estabelecer um novo vínculo entre teoria e prática na busca de construir outro mundo possível.

O marxismo anglo-saxão
Até a década de sessenta, o marxismo ocupava um lugar marginal na cultura intelectual anglo-saxã. Uma das preocupações principais de alguns autores marxistas era a defasagem que existia entre o marxismo continental –representado por Adorno, Horkheimer, Marcuse, Lukács, Korsch, Gramsci, Della Volpe, Colletti, Sartre e Althusser– e o subdesenvolvimento do marxismo britânico. Durante as décadas de sessenta e setenta, produziu-se uma intensa discussão sobre as causas da falta de uma tradição revolucionária dentro da cultura inglesa. O debate sobre a situação inglesa se produziu, entre outros, em uma série de trabalhos de Perry Anderson (1964; 1968) e Edward Thompson (1978). Anderson argumentava que a Inglaterra era a sociedade mais conservadora da Europa, e sua cultura tinha a imagem daquela: medíocre e inerte. O capitalismo inglês se desenvolveu de uma forma anômala, e a aristocracia parcialmente modernizada tinha conseguido manter sua hegemonia sobre a burguesia e o proletariado; este último, por sua vez, tampouco tinha conseguido hegemonezar as lutas das classes subalternas. A cultura inglesa se organizou sem uma análise totalizante da sociedade e sem uma crítica marxista revolucionária. A estrutura social inglesa –especialmente a ausência de um movimento revolucionário da classe operária– era a explicação deste desenvolvimento anômalo. Esta interpretação, entretanto, foi objeto de uma forte crítica por parte de Thompson (Callinicos, 2001).
A partir este período, produziu-se uma mudança dramática na influência do marxismo. O centro de produção intelectual do pensamento marxista se deslocou para o mundo anglo-saxão. A região mais atrasada da Europa do ponto de vista intelectual se transformou no centro mais importante do pensamento de esquerda. Uma das principais causas foi política. A crise do movimento comunista desencadeada em 1956 pela crise húngara e o XX Congresso do PCUS criou um espaço político para uma esquerda independente em relação ao Partido Trabalhista, assim como do comunismo oficial. A New Left Review foi um dos produtos intelectuais desta nova esquerda, cuja base se posicionava consideravelmente a favor de toda uma série de movimentos –pelo desarmamento nuclear, contra o apartheid na África do Sul, a favor da luta do povo vietnamita– que a fins da década de sessenta inscreviam-se em uma atmosfera geral de contestação. Isto resultou em um crescente interesse pelo marxismo e, também, em uma crescente produção intelectual.
Do ponto de vista intelectual, a hegemonia do mundo de fala inglesa no materialismo histórico foi conseqüência da ascensão da historiografia marxista dentro do pensamento socialista. O domínio dos especialistas anglófonos nesta área tinha sido importante na década de cinqüenta; o marxismo como força intelectual era, virtualmente, sinônimo de trabalho de historiadores. Esta ascensão se produziu a partir da influência exercida por um grupo de jovens historiadores comunistas do final da década de quarenta e princípio da de cinqüenta, que com o tempo transformaram as interpretações aceitas do passado inglês e europeu: Christopher Hill, Eric Hobsbawm, E. P. Thompson, George Rudé, Geoffrey de Ste. Croix, entre outros. Vários vinham publicando desde o início dos anos sessenta, mas a consolidação de sua obra coletiva como um modelo de peso se desenvolveu verdadeiramente durante os anos setenta, década em que se publicou uma série de obras importantes para a historiografia marxista. A geração dos anos sessenta ofereceu uma grande parte dos leitores das grandes obras de maturidade dos historiadores marxistas (The Making of the English Working Class e Whigs and Hunters de Edward P. Thompson; The World Turned Upside Down de Christopher Hill, e a trilogia de Eric Hobsbawm sobre o longo século XIX). Uma das conseqüências importantes destes trabalhos foi seu papel de modelo para os jovens intelectuais radicais que então ingressavam nas instituições universitárias (Anderson, 1988; Callinicos, 2001).
Na ebulição intelectual que se seguiu, uma das principais questões se referiu ao tipo de marxismo que estaria mais adaptado às necessidades tanto dos militantes políticos como dos intelectuais socialistas. Na Grã-Bretanha, o debate se enfocou ao redor da releitura althusseriana do marxismo. A New Left Review e sua editora Verso publicaram traduções dos escritos do Althusser (1967; 1970) e de seus colaboradores; ao mesmo tempo que toda uma série de autores marxistas franceses e italianos, e de diferentes escolas de pensamento do marxismo ocidental, apresentaram suas obras ao público inglês: estruturalismo, formalismo e psicanálise
[12]. A recepção de Althusser deve ser colocada no contexto mais geral da recepção do estruturalismo e do pós-estruturalismo francês. Na Grã-Bretanha, os cultural studies tinham sido lançados por intelectuais da nova esquerda como Raymond Williams e Stuart Hall. Entretanto, esta recepção do marxismo ocidental não foi unânime. Thompson denunciou a importação irrefletida dos modelos continentais em nome de uma tradição radical inglesa que se remontava às revoluções democráticas dos séculos XVII e XVIII. Em um artigo, Thompson (1978) lança um ataque frontal contra o marxismo althusseriano, ao qual reprovava a tentativa de deduzir a prática e o sujeito da história a partir da teoria. Anderson, por sua vez, foi o principal responsável pela importação desse marxismo europeu, detestado por Thompson, a fim de remediar as insuficiências da tradição marxista nativa. Enquanto isso, com a publicação de Poverty of theory, a posição do Anderson devem mais ambígua. Em Considerações sobre o marxismo ocidental (1976), o autor opõe o marxismo ocidental, representado por Adorno, Horkheimer, Gramsci, Lukács, Althusser e Della Volpe –interessado em temas filosóficos, ideológicos e estéticos, e distante da prática–, ao marxismo clássico, à tradição de Marx, Engels, Lênin, Trotsky, onde as análises históricas, políticos e econômicos estavam organicamente ligadas à ação concreta no seio do movimento operário (Anderson, 1987). A resposta de Anderson (1980) ao Poverty of theory foi uma defesa raciocinada da contribuição de Althusser e da adesão a um enfoque mais materialista, representado no plano filosófico por G. Cohen (Karl Marx’s Theory of History: A Defence), e no plano político pelo movimento trotskista. A evolução de Anderson refletia a relevância relativa do trotskismo na cultura da esquerda ango-saxã. Os escritos publicados por Isaac Deutscher e sua vida no exílio na Inglaterra foram importantes na formação da nova esquerda britânica, e sua trilogia de Trotsky contribuiu para aumentar o prestígio intelectual do trotskismo. Ernest Mandel –importante dirigente dessa corrente política– participou de maneira ativa nos debates que atravessaram à esquerda no mundo de fala inglesa, e seus escritos foram rapidamente traduzidos ao inglês. Foram principalmente Deutscher e Mandel que influenciaram Anderson e a equipe da New Left Review embora houvesse também outros sinais da vitalidade do movimento trotskista (Callinicos, 2001).
Como afirma Anderson (1988), no começo dos anos setenta era notável o contraste entre o auge intelectual do marxismo anglo-saxão e a reação que se abatia sobre a França depois de que os novos filósofos procedentes da geração de 1968 aderiram ao maoísmo ou ao liberalismo. Entretanto, no final da década de setenta e começo da de oitenta, produz-se no mundo anglo-saxão o surgimento do neoliberalismo, com a chegada ao poder de Margaret Thatcher na Inglaterra e Ronald Reagan nos Estados Unidos. O advento de Thatcher e Reagan se traduziu em uma ampla ofensiva contra os movimentos operários nos dois países, que não se conta só pelas grandes derrotas (como a dos mineiros ingleses em 1984 e 1985) mas também esteve na origem do conjunto de políticas neoliberais que se impuseram nos anos noventa como modelo para o capitalismo em seu conjunto.
Se por si próprios esses reversos eram suficientes para criar um clima de pessimismo e dúvida no seio da esquerda intelectual, os problemas especificamente teóricos também contribuíram com este clima. Enquanto que, na cúpula da radicalização de fins dos anos sessenta e começo dos setenta, a adoção do estruturalismo francês e do que mais tarde se chamaria de pós-estruturalismo tinha contribuído para o renascimento do marxismo, a fins dos anos setenta podia-se considerar como um dos maiores desafios ao marxismo. Os trabalhos de Foucault foram particularmente importantes neste sentido, pois deram uma base filosófica à idéia de que todas as formas de marxismo apresentavam limites insuperáveis.
É nesta conjuntura pouco favorável dos anos oitenta que aparece pela primeira vez uma forma de pensamento que merece o nome de corrente teórica marxista especificamente anglo-saxã, o marxismo analítico. A obra Karl Marx’s Theory of History. A defence, de G. A. Cohen, pode ser considerada a ata de fundação do marxismo analítico. Nesta obra, Cohen –canadense, membro do Partido Comunista de Québec, mas formado em Oxford nas técnicas da filosofia da linguagem– procura elucidar as teses do materialismo histórico a partir das técnicas da filosofia analítica. Os marxistas, até esse momento, dividiram-se entre uma série de campos filosóficos, os hegelianos e os althusserianos fundamentalmente, e coincidiam no fato de que a filosofia analítica, ensinada nas principais universidades anglo-saxãs, era politicamente conservadora e estreitamente provinciana. Por outro lado, o rechaço do marxismo por parte da filosofia analítica tinha sido total. Cohen, por sua vez, considerou possível utilizar as técnicas da filosofia da linguagem para compreender e formular de forma clara as teses essenciais do materialismo histórico e apreciar sua validade. As teses de Cohen opunham-se frontalmente àquelas sustentadas pelos marxistas, e rechaçavam especialmente a idéia de que existia uma diferença fundamental de método entre a teoria marxista e as ciências sociais burguesas tradicionais. Para Cohen, as teses de Marx sobre o capitalismo, a história, as classes sociais, e a revolução deviam ser compreendidas pelos mesmos métodos que toda outra forma de teoria social, uma idéia exatamente contrária à sustentada, por exemplo, por Lukács
[13] (Bertram, 2001).
Em seu Karl Marx’s Theory of History, Cohen defende, frente à crítica filosófica, uma interpretação tradicional do materialismo histórico, fundada no prefácio à Contribuição à crítica da economia política. Cohen procura elaborar um tipo de explicação funcional que lhe permita afirmar que as relações de produção existem por causa de sua tendência a desenvolver as forças produtivas, e que a superestrutura tende a estabilizar estas relações.
A reconstrução do materialismo histórico organiza-se a partir de duas teses: a tese do desenvolvimento e a tese da primazia. A tese do desenvolvimento sustenta que as forças produtivas materiais têm uma tendência a se desenvolver com o passar do tempo. A tese da primazia afirma que as características das relações de produção se explicam pelo nível de desenvolvimento das forças produtivas, e não o inverso. Cohen também afirma que as características das instituições jurídicas e políticas devem ser explicadas pela natureza das relações de produção. Se à tese do desenvolvimento e à tese da primazia lhe somamos a idéia de que aos diferentes níveis sucessivos de desenvolvimento das forças produtivas correspondem funcionalmente diferentes formas sociais, obtemos uma interpretação marxista clássica da história. Cohen não ignora que esta representação tradicional da história, por várias razões irresistíveis, caiu em desuso. Para solucionar o problema, propõe uma leitura da teoria marxista da história a partir de uma explicação funcional. A leitura funcional sustenta que as características das relações sociais de produção são de natureza tal que permitem às forças produtivas desenvolverem-se. Ao invocar uma explicação funcional, Cohen desencadeia no seio do marxismo analítico o primeiro grande debate
[14]. Em uma série de artigos, Elster declara que se o marxismo repousar sobre uma explicação funcional, não o faz na sustentada por Cohen.
No coração da crítica de Jon Elster a Cohen concernente a seu uso da explicação funcional encontra-se um programa de ofensiva sobre o terreno da filosofia das ciências sociais. Elster recomenda, em particular, a utilização do método de eleição racional e das ferramentas da teoria dos jogos
[15]. Seus trabalhos permanecem no nível metodológico. Em Making Sense of Marx, Elster analisa de forma sistemática os princípios do marxismo de eleição racional. As duas teses fundantes são: 1) o individualismo metodológico, as estruturas sociais são conseqüências involuntárias de ações individuais; e 2) os agentes humanos possuem uma racionalidade instrumental ou, em outros termos, eles escolhem os meios mais eficazes para alcançar seus fins. A primeira das teses vincula-se à ofensiva ideológica desencadeada contra o marxismo por Popper e Hayek; a segunda generaliza um dos postulados mais importantes da economia neoclássica (Callinicos, 2001; Bertram, 2001).
Entre os marxistas analíticos que aplicaram estes métodos aos problemas clássicos do marxismo, John Roemer foi um dos mais destacados. Em um de seus primeiros trabalhos, Analytical Foundation of Marxian Economic Theory propôs uma leitura neo-ricardiana e altamente matematizada da teoria econômica de Marx. Este desenvolvimento continuou em sua obra A General Theory of Exploitation and Class, que ilustra o projeto analítico em seu conjunto, tentando fundar as representações marxistas dos macro-fenômenos sociais, como as classes, a partir dos micro-motivos individuais (Roemer, 1982).
Certos marxistas analíticos, como John Roemer e Philippe Vão Parijs, participaram de uma série de debates que tentavam desenvolver a tradição marxista da economia política para explicar as razões do fim da era de ouro do capitalismo. A partir de velhas controvérsias sobre a transformação de valores em preços de produção, e sobre a queda tendencial da taxa de lucro, economistas de esquerda como Piero Sraffa afirmaram que a teoria do valor trabalho não permitia determinar a evolução dos preços e constituía um obstáculo para a compreensão das economias capitalistas. Sobre a base desta preocupação, Roemer foi um pouco mais longe e aderiu às tese neoclássicas. Em A General Theory of Exploitation and Class (1982), Roemer se esforça para desvincular a teoria marxista da exploração da teoria do valor trabalho, e reformula a primeira utilizando a teoria do equilíbrio geral e da teoria dos jogos (Callinicos, 2001). Uma grande parte da obra está consagrada a demonstrar que os conceitos de classe e exploração podem ser derivados de modelos neoclássicos relativamente padrão. Roemer começa por fazer sua a idéia marxista clássica da exploração, segundo a qual a existência de mais-trabalho indica se existe exploração ou não. Ele demonstra, entre outras coisas, a proposição herética de um ponto de vista marxista, segundo a qual em uma economia onde todos os agentes trabalhem por si mesmos, e interatuando só para trocar produtos no mercado, haverá exploração se os produtores partirem de dotações de trabalhos desiguais. Um dos resultados interessantes de A General Theory of Exploitation and Class é o princípio de correspondência entre as noções de classe e de exploração; isto demonstra que a situação de explorado e a situação de classe estão ligadas. Quaisquer que sejam as objeções que lhe possam fazer, a reinterpretação de Roemer da teoria marxista das classes e da exploração continua sendo um dos novos e fecundos aportes do marxismo analítico.
Uma terceira corrente de pensamento no seio do marxismo analítico (encarnada pelo Robert Brenner e Erik Olin Wright) mantém relações mais ambíguas com o marxismo de eleição racional; Wright e Brenner, por exemplo, opõem-se ao individualismo metodológico (Callinicos, 2001).
Em seu ensaio Agrarian Class Structure and Economic Development in Pre-industrial Europe, Brenner (1995) sustenta que o capitalismo pode ser mais bem compreendido como provindo de uma conseqüência involuntária da luta de classes no feudalismo. Resumindo o processo, Brenner (1977) sustenta que a passagem de uma “economia tradicional” para uma economia relativamente auto-suficiente de desenvolvimento econômico era previsível, dada a emergência de uma disposição específica de relações sociais de propriedade no campo. O resultado dependeu do precedente sucesso de um duplo processo de desenvolvimento de classes e de conflito de classes; por um lado, a supressão da servidão e, por outro, o afogamento da emergência da pequena propriedade camponesa. A interpretação do Brenner sobre a origem do capitalismo europeu enfatiza o papel dos agentes, insistindo na luta de classes entre senhores e camponeses no campo no fim da Idade Média, assim a ação dos indivíduos dependeria das regras da reprodução (ver Brenner, 1977). Esta releitura de Brenner deu lugar, por um lado, ao que se deu em chamar o debate Brenner (ver Alson e Philpin, 1995) e, por outro lado, ao surgimento do “marxismo político”. O marxismo político, no qual se inscreve –além de Robert Brenner– Ellen Meiksins Wood, tem duas características distintivas: em primeiro lugar, rechaça o modelo marxista clássico de mudança histórica, como foi esboçado no prefácio da Contribuição à crítica da economia política; em segundo lugar, o marxismo político sustenta que a primazia explicativa na história deve estar de acordo com as mudanças nas relações de produção
[16].
Por sua vez, seguindo a linha de pesquisa proposta por Roemer, Erik Olin Wright (1985) propõe uma análise de corte transversal da estrutura de classes das sociedades modernas fundadas sobre os diferentes tipos de dotações (força de trabalho, propriedade do capital, qualificações técnicas, etc.) que possibilitem diversas coalizões de agentes potenciais. A análise de Wright apresenta a vantagem de tratar, de uma abordagem nova e mais rigorosa, o problema da posição de classe contraditória, que já tinha sido abordado a partir de uma perspectiva metodológica althusseriana. Se os interesses tanto de Roemer como de Wright dirigem-se a problemas especificamente marxistas, seu método e suas soluções parecem profundamente alheios ao marxismo. A análise de Roemer, aplicada à sociologia, parece estar mais em linha com uma análise weberiana, na medida em que coloca em cena diferentes grupos que exploram seus recursos particulares no mercado, em lugar de levar a cabo uma aproximação propriamente marxista, fundada sobre o conflito em torno da exploração e da mais-valia. Se Cohen e Roemer contribuíram com aportes interessantes e originais, pode-se mencionar também neste grupo Adam Przeworski (1990), que representa a tentativa de fundar uma sociologia política a partir do marxismo analítico. Seus trabalhos problematizam o dilema que os partidos socialistas enfrentam quando têm que procurar o poder em democracias parlamentares. Przeworski sustenta que a busca racional de uma maioria eleitoral conduz os partidos socialistas a minimizar a importância da noção de classe, enquanto eixo da organização política, e que isto, por sua vez, tem como efeito a alienação de sua base eleitoral (Bertram, 2001).
Depois das contribuições originais e inovadoras de Cohen, Roemer e Przeworski, o marxismo analítico perdeu pouco a pouco sua coerência e sua unidade enquanto escola; e isto apesar dos interessantes trabalhos que seus principais membros continuaram produzindo. Por exemplo, o caso de Cohen que, depois de Karl Marx’s Theory of History, elaborou numerosos artigos dirigidos à crítica da obra de Rawls. O primeiro, History, Labour and Freedom, representa uma continuação de sua obra anterior –Karl Marx’s Theory of History–, e uma resposta às críticas que esse livro havia suscitado. Seu segundo trabalho, Self-ownership, Freedom and Equality, é um livro de filosofia política normativa que ataca essencialmente os trabalhos do filósofo libertariano americano Robert Nozick
[17]. Na visão de Callinicos (2001), dada a heterogeneidade do marxismo analítico, gerou-se um beco sem saída, que não permitiu propor uma interpretação especificamente marxista do mundo. Em certa medida, isto foi o resultado das próprias contradições internas do marxismo de eleição racional.

O marxismo nos Estados Unidos
Inegavelmente, os marxistas anglófonos produziram as maiores obras durante as últimas duas décadas. Pode-se citar o grande clássico de G. E. M. de Ste. Croix, The Class Struggle in the Ancient Greek World (1981), que é a obra de um historiador da mesma geração de Hill e Hobsbawm, mas formado em outro meio intelectual e político: os estudos clássicos de Oxford e o Partido Trabalhista, respectivamente. Historiadores mais jovens também produziram obras importantes –por exemplo, The London Hanged, de Peter Linebaugh (1991); Merchants and Revolutions, de Brenner (1993), e Byzantium in the Seventh Century, de John Haldon (1997). Brenner também contribuiu à análise do capitalismo contemporâneo (Brenner, 2002; 2004). De uma maneira similar, Wright produziu uma nova obra continuando seu controvertido estudo sobre as classes sociais nos países ocidentais. Estas obras mais conhecidas representam só a ponta do iceberg: em particular nos Estados Unidos, muitos marxistas universitários simplesmente ignoraram os renunciamentos espetaculares dos últimos vinte anos, e continuaram trabalhando nos diversos domínios da filosofia, da economia política, da sociologia e da história (Callinicos, 2001).
A grande onda de radicalização que se produziu nos Estados Unidos por volta do fim dos anos sessenta e princípio dos anos setenta teve como efeito colocar no vasto sistema universitário a grande quantidade de professores que participaram dos movimentos dessas décadas. Isto explica, em parte, o avanço no seio das universidades de temas como o racismo, o sexismo e a homofobia. O sistema universitário possibilitou que intelectuais marxistas pudessem desenvolver suas pesquisas apoiando-se em uma grande variedade de paradigmas teóricos.
De uma certa maneira, assiste-se a uma repetição do fenômeno que se deu com a emergência de grandes personalidades do pensamento marxista como Edward Thompson, Cristopher Hill, Eric Hobsbawm e Paul Sweezy, mas com uma diferença: o centro de gravidade se deslocou ao outro lado do Atlântico. Três dos cinco principais nomes do marxismo analítico –Roemer, Brenner e Wright– são americanos; Cohen é canadense, estabelecido em Oxford, e Elster é norueguês e trabalha nos Estados Unidos. No caso da Inglaterra, pode-se citar o teórico da literatura Terry Eagleton, que nos últimos trinta anos não cessou de escrever textos importantes inspirados em autores tão diversos como Althusser, Derrida, Trotsky e Benjamin (Eagleton, 1993; 1998). Mas os marxistas britânicos que são conhecidos no exterior escrevem cada vez mais para um público situado principalmente nos campus americanos, e com uma tendência a ir trabalhar neles. O símbolo desta mudança é a presença na Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA) de Perry Anderson, um dos intelectuais que mais contribuíram para a reconstrução do marxismo inglês. Este fenômeno inscreve-se no quadro de uma redistribuição geral do poder intelectual no seio das universidades ocidentais. Por exemplo, é fácil constatar que na era de Davidson, Rawls, Dworkin, Kripke e Dennett, os Estados Unidos passaram a adquirir uma posição dominante dentro da filosofia analítica. O fato de que a teoria marxista tenha seguido o mesmo movimento é um sintoma de sua integração à vida universitária (Callinicos, 2001).
Um caso interessante é o de Fredric Jameson, que ganhou reconhecimento graças a seus ensaios sobre o pós-modernismo (Jameson, 1984)
[18]. O marxismo de Jameson é sem dúvida de uma grande originalidade. Em seus trabalhos, o autor tenta reconciliar Althusser e Lukács ao analisar os lapsos, censuras e não ditos que caracterizam os discursos ideológicos. O projeto intelectual de Jameson dirige-se em um sentido oposto ao dos principais debates sobre o pós-modernismo, que privilegiam a fragmentação e a incerteza. Jameson propõe uma interpretação totalizante da arte pós-moderna como a forma cultural que adota uma nova era do capitalismo mundial. Entretanto, suas análises sócio-histórica são recuperadas enquanto tentativas de descrição das características da cultura contemporânea por tradições universitárias que estão nas antípodas do materialismo de Jameson e de seu anticapitalismo radical.
De uma certa maneira, pode-se aplicar ao marxismo contemporâneo de língua inglesa o mesmo diagnóstico de Anderson sobre o marxismo ocidental: tratar-se-ia de um idealismo que se refugia nas universidades para fugir da hostilidade do mundo exterior.

O marxismo da teologia da libertação
[19]
A teologia da libertação pode ser compreendida como a articulação entre um conjunto de escritos[20] produzidos a partir da década de setenta e um amplo movimento social que fez sua aparição nos anos sessenta. Este movimento compreendia setores da igreja, movimentos religiosos laicos e comunidades eclesiais de base.
A teologia da libertação é uma teologia concreta e histórica. Como teologia concreta, insere-se na sociedade latino-americana, e é a partir desta situação histórica concreta que desenvolve sua teologia. Suas análises concretas estão vinculadas de maneira estreita com as teorias das ciências sociais. Não pode deduzir suas análises concretas de suas posições teológicas, mas, por sua vez, suas posições teológicas não podem ser independentes de suas análises concretas. Enquanto teologia, antecede à práxis; mas ao anteceder à práxis constitui um conjunto de crenças vazias: a existência de Deus, seu caráter triádico, a redenção, etc. Ao serem professadas como atos de uma fé independente de sua inserção histórica e concreta, estas crenças não são mais que abstrações vazias que compõem um dogma sem conteúdo. O problema da teologia da libertação não é negar tais crenças, mas sim perguntar por seu significado concreto. Portanto, pergunta não é se Deus existe, mas sim onde está presente e como atua. O ponto de partida da teologia da libertação é a pergunta pelo lugar concreto e histórico no qual Deus se revela. A teologia da libertação nasce da resposta que ela mesma dá a esta pergunta. Esta resposta se dá por meio do que estes teólogos chamam “a opção pelos pobres”. Esta opção pelo pobre é a opção por Deus, mas deste modo é uma opção dos seres humanos enquanto eles persigam a busca da libertação. A libertação, portanto, é a libertação do pobre. Deus não diz o que terá que fazer. Sua vontade é libertar o pobre, mas o caminho da libertação deve ser encontrado (Hinkelammert, 1995).
O descobrimento do marxismo pelos cristãos progressistas e pela teologia da libertação não foi um processo puramente intelectual ou universitário. Seu ponto de partida foi um fato social incontrovertível, uma realidade maciça e brutal na América Latina: a pobreza. Um número de crentes escolheu o marxismo porque este parecia oferecer a explicação mais sistemática, coerente e global das causas da pobreza; e para lutar eficazmente contra a pobreza, era necessário compreender suas causas.
O interesse que os teólogos da libertação manifestaram pelo marxismo é mais amplo que aquele referido aos conceitos analíticos do marxismo; concerne igualmente aos valores do marxismo, suas opiniões ético-políticas, sua opção por uma práxis transformadora do mundo e pela antecipação de uma utopia futura.
Os recursos marxistas nos quais se inspiraram os teólogos da libertação são variados. Enrique Dussel, por exemplo, é sem dúvida quem possui o conhecimento mais profundo da obra de Marx, sobre a qual publicou uma série de obras de enorme erudição e originalidade (Dussel, 1985; 1988). Também existem referências diretas a Marx nas obras de Gutiérrez, os irmãos Boff e Assmann. Outra referência importante da teologia da libertação são as obras de Bloch, Althusser, Marcuse, Lukács, Lefebvre e Mandel. Outras referências importantes, talvez mais que as européias, são as influências latino-americanas: o pensamento de José Carlos Mariátegui; a teoria da dependência, de André Gunder Frank, Theotonio dos Santos, Fernando Henrique Cardoso, e também Aníbal Quijano, para citar apenas alguns.
As categorias marxistas foram inovadas e reformuladas pela teologia da libertação à luz de sua cultura religiosa, assim como de sua experiência social. Estas inovações deram ao pensamento marxista novas inflexões, perspectivas inéditas e aportes originais, por exemplo na reformulação do conceito de pobre. A preocupação pelos pobres foi uma tradição milenar da igreja, retomando as raízes evangélicas do cristianismo. Os teólogos latino-americanos representam uma continuidade com esta tradição, que lhes serve constantemente de referência e inspiração. Mas há uma diferença radical que os separa desta tradição: para a teologia da libertação, os pobres não são essencialmente objetos de caridade, e sim objetos de sua própria libertação. A ajuda paternalista dá lugar a uma atitude solidária com a luta dos pobres por sua própria libertação. É aqui que se opera a união com um conceito fundamental do marxismo, ou seja: “a libertação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores”. Esta mudança é possivelmente a novidade política mais importante, e a mais rica em conseqüências, aportada pelos teólogos da libertação ao conjunto da doutrina social da igreja. Trará também as conseqüências mais importantes no campo da práxis social.
A substituição da categoria proletariado pela de pobre, em parte, relacionava-se com as características estruturais da situação latino-americana, onde tanto nas cidades como no campo existia uma enorme massa de desempregados, semi-desempregados, trabalhadores sazonais, vendedores ambulantes, marginais, prostitutas –todos excluídos do sistema de produção formal. Outro aspecto distintivo do marxismo da teologia da libertação é a crítica moral do capitalismo. O cristianismo da libertação manifesta um anticapitalismo mais radical, intransigente e categórico –cheio de repulsão moral– que a maioria dos partidos comunistas do continente, que acreditam nas virtudes progressistas da burguesia industrial e no papel histórico “anti-feudal” do desenvolvimento capitalista.
A crítica do sistema de dominação econômica e social existente na América Latina como forma de idolatria será esboçada, pela primeira vez, em uma coleção de textos do Departamento Ecumênico de Investigações (DEI) de São José da Costa Rica, publicada com o título La lucha de los dioses. Los ídolos de la opresión y la búsqueda del Dios liberador (1980). Em sua introdução afirma-se uma ruptura decisiva com a tradição conservadora e retrógrada da igreja, que depois de séculos apresenta o ateísmo –cuja forma moderna é o marxismo– como o arquiinimigo do cristianismo
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Para os teólogos da libertação, o problema não é a alternativa entre teísmo ou ateísmo, ou seja, não partem de uma metafísica abstrata, mas sim da alternativa entre idolatria e Deus da vida, onde o critério é dado pela vida e pela morte. Este critério, da vida e da morte, encontra-se com a opção pelo pobre, agora com uma nova dimensão. O pobre não é unicamente pobre, é deste modo vítima. A partir da análise da idolatria e de sua vítima, a teologia da libertação analisa os processos de vitimização. A teologia oficial é confrontada como uma teologia da sacrificialidade, do Deus que quer sacrifícios. A teologia da libertação desenvolve uma forte crítica da sacrificialidade teológica, a partir da análise da sacrificialidade do sistema econômico e social imposto na América Latina. Descobre-se toda uma história da sacrificialidade da própria conquista da América, e das reações em apoio dos indígenas. Gustavo Gutiérrez retoma a discussão sobre a teologia da conquista, e recupera a figura de Bartolomé de Las Casas como um antepassado chave da teologia da libertação (Hinkelammert, 1995).
Para o Löwy (2001), os elementos em comum entre o marxismo e a teologia da libertação são o ethos moral, a revolta profética, a indignação humanista contra a idolatria do mercado e –talvez o mais importante– a solidariedade com as vítimas. A crítica do fetichismo da mercadoria é para Marx uma crítica da alienação capitalista do ponto de vista do proletariado e das classes exploradas. Para a teologia da libertação, trata-se do combate entre um Deus verdadeiro da vida e os falsos ídolos da morte. Mas ambos se posicionam a favor do trabalho vivo contra a reificação, e a favor da vida dos pobres e dos oprimidos contra o poder alienado das coisas. Sobretudo, marxistas e cristãos comprometidos lutam pela emancipação social dos explorados.

A guisa de conclusão
Como afirmamos no início deste artigo, a necessidade de uma história interna da teoria é fundamental para o marxismo a fim de medir a vitalidade de seu programa de pesquisa. Entretanto, as condições dos descobrimentos intelectuais do marxismo são, fundamentalmente, resultados da aparição de determinadas contradições da sociedade capitalista, quer dizer, do movimento real das coisas.
Assim, a crise aberta pela mundialização neoliberal, e por suas conseqüências econômicas, políticas sociais e ideológicas, constitui –como afirma Mészáros, 2004– a condição negativa para uma renovação do marxismo. O marxismo tem, a partir desta crise estrutural, uma nova justificação histórica, um objeto para sua análise, e uma ocasião para uma autocrítica radical que é, ao mesmo tempo, a crítica da ordem capitalista. Existe, além disso, a possibilidade para pensar em uma alternativa global à barbárie capitalista, e para estabelecer um novo vínculo entre teoria e prática buscando construir outro mundo possível.
O desaparecimento da União Soviética e dos países do socialismo real não implicou o fim do marxismo. Sob o efeito deste desaparecimento espetacular, manteve-se uma pesquisa livre e plural. Marx continuou sendo objeto de investigação e de tentativas de renovação. Mais que ao fim do marxismo, assistimos a um renascimento disperso de vários marxismos. Este ressurgimento deve-se à própria dinâmica do capitalismo mundial e à aparição de novas contradições. O testemunho deste renascimento é constituído por importantes trabalhos de uma série de pesquisas que continuam dando amostras da vitalidade do pensamento marxista. A historiografia britânica marxista alcançou um público mundial –nunca antes visto– com a publicação de A Era dos extremos, de Eric Hobsbawm, a mais influente interpretação intelectual do século XX. Herdeiros desta tradição historiográfica são, entre outros, os trabalhos de Perry Anderson. No campo da economia, assistimos a importantes desenvolvimentos: as análises do sistema mundial capitalista realizadas por Samir Amin, Immanuel Wallerstein e André Gunder Frank; as pesquisas sobre a lógica da mundialização levadas adiante por François Chesnais e Isaac Joshua; e as análises do desenvolvimento do capitalismo a partir da Segunda guerra mundial realizados por Robert Brenner. As contribuições para uma crítica da ecologia política, de autores como John Bellamy Foster, Enrique Leff, Martin O’Connor e Elmar Altvater, foram de grande importância para o desenvolvimento do marxismo.
A exploração de um “materialismo histórico-geográfico” –que aprofunda as pistas abertas por Henry Lefebvre sobre a produção do espaço– levou David Harvey a explorar os processos de acumulação em nível internacional, dando lugar a um debate fundamental para nossa época sobre o novo imperialismo; debate no qual os trabalhos do Giovanni Arrighi, Leio Panitch e Sam Gindin, entre outros, foram centrais.
Os estudos culturais, ilustrados especialmente pelos trabalhos de Fredric Jameson sobre a pós-modernidade –talvez a melhor análise cultural de nossa época–, Terry Eagleton no campo da literatura, e Aijaz Ahmad na crítica da cultura da periferia do capitalismo, abrem novas perspectivas à crítica das representações, das ideologias e das formas estéticas. Os estudos feministas, por sua vez, relançam a reflexão sobre as relações entre classes sociais, gênero e identidades comunitárias.
A crítica da filosofia política encontrou um novo fôlego nos ensaios de Domenico Losurdo e Ellen Meiksins Wood sobre o liberalismo, os trabalhos de Jacques Texier e Miguel Abensour sobre o lugar da política no pensamento de Marx, e as elaborações da filosofia política anglo-saxã, com os trabalhos de Roemer, Geras e Cohen e as obras de Callinicos, que mostram a vitalidade do marxismo militante.
Outros importantes desenvolvimentos estão constituídos por trabalhos marxológicos como os de Daniel Bensaïd, Enrique Dussel, Eustache Kouvélakis e Jacques Bidet; a releitura crítica de grandes figuras como Georgy Lukács ou Walter Bejamin; as interrogações de juristas sobre as metamorfoses e incertezas do direito; as controvérsias sobre o papel da ciência e da técnica, e sobre seu controle democrático; e a interpretação original da psicanálise lacaniana por Slavoj Žižek.
Como afirma Daniel Bensaïd (1999), este florescimento do pensamento marxista é o resultado de uma pesquisa rigorosa, afastada das modas acadêmicas, e mostra até que ponto os espectros de Marx inquietam nosso presente. Seria errôneo opor uma imaginária idade de ouro do marxismo dos anos sessenta à esterilidade dos marxismos contemporâneos, apesar de que os oitenta foram anos relativamente desérticos. O novo século promete ser um período de criatividade para esta tradição teórica. O trabalho molecular da teoria, menos visível que ontem, não tem provavelmente o benefício de contar com novos pensadores, de notoriedade comparável a dos antecessores. Também adoece da falta de diálogo estratégico com um projeto político capaz de unir e combinar as energias –um problema central que o marxismo deverá resolver se quer voltar a converter-se em uma filosofia da práxis. Provavelmente, entretanto, o marxismo do século XXI será mais denso, mais coletivo, mais livre, e estará pleno de novas promessas no período que começa.
Para terminar, nós gostaríamos de recuperar a análise que realizava Sartre sobre o marxismo há algumas décadas, mas que continua tendo a mesma vigência de então. Em Questão de método, o filósofo francês afirmava que uma filosofia seguirá sendo eficaz enquanto viva a práxis que a engendrou e que a sustenta. Quando existir, para todos, uma margem de liberdade real além da produção da vida, o marxismo desaparecerá e seu lugar será ocupado por uma filosofia da liberdade. Mas estamos desprovidos de qualquer meio, de qualquer instrumento intelectual ou de qualquer experiência concreta que nos permitam conceber essa liberdade ou essa filosofia. Por essas razões, o marxismo continua sendo a filosofia insuperável de nosso tempo, porque as circunstâncias que o engendraram ainda não foram superadas.